Notas – Cap. 6 - 10

Capítulo 6

1
Jesus e seus discípulos estavam em jornada de ministério, e passando por uma plantação de cereais, como era permitido pela Lei (Dt 23.25), colheram algumas espigas para delas se alimentarem. Mas, as autoridades judaicas os censuraram por estarem agindo assim durante o shabbãth (sábado judaico, que significa no hebraico original: tempo de paz, misericórdia, adoração ao Criador, gozo espiritual e descanso), Jesus então vai lhes explicar que perante a Lei, atos de misericórdia (como este e os que se seguirão), não apenas são permitidos, mas obrigatórios e prioritários sobre qualquer outra lei (Jo 7.23-24; ver Mc 2.14).

2 Nem Deus nem os doutores e intérpretes da Mishna (tratado das interpretações das leis sagradas judaicas), condenaram a Davi por esta transgressão (Mt 12.4-8; Mc 2.23-25). Davi foi orientado por Deus para agir daquela maneira, a fim de preservar sua vida e a de seus companheiros para servir ao Senhor. O mesmo Deus do Shabbãth (sábado judaico), tem o direito, como Autor do mandamento, de interpretar suas exceções, não sendo engessado pela Lei, mas tendo-a sob o controle absoluto da Sua vontade. Essa é a flexibilidade divina que se move em função da misericórdia e do amor.

3 Num claro gesto de contraste em relação aos líderes religiosos, que sorrateiramente foram espionar seus procedimentos, Jesus age abertamente e sem receio. Pede para o homem sair do seu lugar e vir para o centro do salão de cultos da sinagoga, onde todos poderiam ver e ouvir claramente o que se passava. Aquele que segue a Cristo deve ser sincero, franco e corajoso (Mt 5.34-37; Tg 5.12).

4
Jesus já havia suportado muitos ataques e provocações dos fariseus, escribas e líderes religiosos (todos também líderes políticos). Então Ele inverte as posições e passa a questionar seus oponentes e a todos na sinagoga (Mc 3.4). As autoridades judaicas ficaram furiosas, pois não conseguiram resistir ao raciocínio brilhante, simples e cheio de compaixão do Senhor. E por isso, começaram a planejar um meio de eliminá-lo (Jo 5.18; ver Mc 3.6). Os líderes religiosos precisam ter cuidado, pois a religião, muitas vezes, transforma a justiça em transgressão, e o ilícito (planejar a morte ou a exclusão de um inocente), num ato legal perante a lei (os estatutos).

5 Para o próprio Filho de Deus encarnado, a oração era a perfeita comunhão com o Pai. Por isso, Jesus, freqüentemente se dedicava a longos períodos de oração, muitas vezes em jejum, especialmente quando precisava tomar uma decisão importante. O fato de Jesus dar tanta atenção a esse diálogo com Deus, deve nos servir de inspiração. Jesus passou aquela noite inteira em oração e ao raiar do dia saiu para escolher, segundo a vontade soberana do Pai, aqueles discípulos que – cada qual com a sua contribuição – seriam responsáveis pelos alicerces da Igreja (Ef 2.20), tarefa que desde o início foi distribuída a um grupo de cristãos e não exclusivamente a uma pessoa.

6 A expressão em aramaico (o dialeto hebraico que Jesus falava), aqui transliterada por Shaliah, quer dizer "apóstolos" (em grego: ), e se refere a alguém que recebeu comissão e autoridade explícitas daquele que o enviou, todavia sem o poder para transferir seus atributos para outra pessoa. Ou seja, "enviados com uma missão específica" (Mc 6.30; 1Co 1.1; Hb 3.1). Entre a multidão que veio ouvir ao Senhor naquele dia, havia um grupo que o seguia regularmente e se dedicava aos seus ensinos, havia ao todo cerca de 72 homens, considerando que esse fora o número de missionários que Jesus enviou em missão evangelística (10.1,17). Mais tarde, logo após sua ascensão aos céus, cerca de 120 cristãos o aguardavam e adoravam em Jerusalém (At 1.15).

7 Bartolomeu é o outro nome de Natanael (Jo 1.45). Judas, filho de Tiago (At 1.13), é chamado de Tadeu por Mateus e Marcos. Todas as três listas citam Pedro em primeiro lugar e Judas Iscariotes no fim. O nome Iscariotes quer dizer: "homem de Queriote", sua cidade natal. Judas foi o único não galileu entre os Doze. Todos os evangelistas mencionam o ato de traição de Judas. Somente Lucas ressalva que ele "se tornou traidor", mostrando que alguém pode começar bem, mas terminar mal. Contudo, enquanto há vida, há tempo para o arrependimento, como ocorreu com Pedro, que também traiu ao Senhor mas se arrependeu e recebeu o pleno perdão de Deus (Mt 26.71-45; Jo 21.15-19).

8 É importante notar que Jesus teve um tempo particular com seus discípulos, no alto da montanha (Mt 5.1) e, em seguida, desce para o planalto (ou planura), onde exorta a todos os fiéis na multidão, e aos discípulos em particular, a terem uma vida na terra verdadeiramente à imagem de Deus (imago Dei), testemunhando ao mundo caído o projeto original de Deus para a humanidade. Jesus proferiu naquele dia uma de suas mais profundas mensagens em relação ao comportamento do verdadeiro filho de Deus: aquela pessoa que crê e é dirigida pelo Espírito do Senhor. O chamado Sermão do Planalto, registrado resumidamente, sob a ótica de Lucas, é o mesmo e conhecido Sermão do Monte ou da Montanha (Mt 5 a 7). Curiosamente, partes do sermão descrito por Mateus, podem ser encontradas em várias passagens de Lucas (11.2-4; 12.22-31, 33, 34), o que demonstra o esforço de Jesus em fazer com que os crentes (da sua época e do futuro) compreendessem, com clareza, o âmago do Evangelho e da vida com Deus.

9
As beatitudes, bem-aventuranças ou ainda bênçãos de felicidade, não se restringem à pobreza material (v.20) e à fome física (v.21). A narrativa de Mateus revela que Jesus referiu-se à pobreza "em espírito" (Mt 5.3) e à fome "de justiça" (Mt 5.6). A arrogância e a utilização de quaisquer meios para se atingir a um fim almejado, parecem ser características demoníacas incorporadas pela humanidade desde a Queda (Gn 3). Nos versículos seguintes Jesus apresenta o verdadeiro mapa da felicidade: A humildade que troca os bens deste mundo pela herança incorruptível de Cristo (Fp 3.7,8; 1Pe 1.3-9); a fome que privilegia o Pão do Céu em relação ao alimento físico (4.4; Jo 6.35); o arrependimento que lamenta profundamente o pecado a ponto de abandoná-lo (2Tm 2.19); a piedade que se espelha no exemplo de Cristo, provoca – nos mundanos e falsos religiosos – o mesmo ódio que o crucificou (2Tm 3.12). Em suma: Todo sacrifício por causa de Jesus Cristo e sua Igreja terá sua recompensa (prêmio, galardão) aqui mesmo na terra, assim como no céu. O verbo no original grego indica que a ação se passa no presente e se estende por todo o futuro: "vosso é o Reino" (no original grego:
).

10 Jesus não está falando da pobreza em si, pois ela pode ser tanto uma maldição quanto uma bênção. Jesus está se referindo à pessoa dos discípulos. Devem ser mesmo pobres (humildes), conscientes de que não têm recursos e que dependem de Deus para realizar absolutamente tudo. Esse é o sentido que o AT dá a esta expressão, muitas vezes equivalente a "piedosos" (Sl 40.17; 72.2,4). Mateus ressalta o significado de "pobres de (ou em) espírito". Os arrogantes, aqueles que se acham "ricos" e, portanto, confiam sua estabilidade aos recursos financeiros e materiais que possuem, desenvolvem freqüentemente uma auto-estima além do normal (complexo de superioridade), menosprezando e usando as pessoas das quais se aproximam. Como se habituam a comprar e conseguir tudo o que desejam, não conseguem receber a Graça do Reino, da qual os pobres e humildes tomam posse com grande alegria e louvor a Deus.

11 Nesta passagem, Jesus não está ensinando sobre a questão do sofrimento universal, mas refere-se a um tipo de sofrimento específico: "por causa do Filho do homem". Ou seja, o preço da humilhação, perdas e dor, que o discípulo de Cristo paga por desejar viver uma vida digna do Senhor, num mundo comandado pelas forças de Satanás, que influenciam o sistema geral de valores e a moda (o estilo de vida) de todos os povos e culturas do planeta. Contudo, aqueles que sofrem por esse motivo devem muito se alegrar, pois já são considerados por Deus como: bem-aventurados (no original grego: benditos, felizes). Pois foram escolhidos, assim como os profetas do AT, para testemunho vivo da ignorância e da perdição humana em contraste com o amor e a sabedoria de Deus.

12
Somente Lucas cita os "ais" de Jesus em relação à rebeldia instalada na alma dos seres humanos, inclusive nos religiosos. A expressão original no grego é:
, e indica profundo lamento por uma desgraça que poderia ser evitada. Jesus se refere aos "ricos" (pessoas presunçosas e arrogantes, que depositam sua fé nos bens financeiros e materiais que são capazes de conquistar a qualquer preço), e lhes garante que já receberam toda a recompensa que merecem. Jesus usa um verbo freqüentemente empregado, em sua época, em recibos de pagamento, significando: "Integralmente Pago!" Quando tudo quanto uma pessoa tem é a sua riqueza mundana, estamos diante de um ser humano muito pobre mesmo. Jamais devemos confundir conforto material com bem-aventurança (felicidade).

13 O principal objetivo de Jesus, especialmente neste sermão, é conscientizar seus discípulos de que eles são filhos do Amor e devem ter amor incondicional. Essa é a essência de Deus e do homem, todavia a alma dos seres humanos está ferida de morte desde a Queda (Gn 3), e tornou-se arrogante, revoltada contra Deus, egoísta, ímpia, amargurada, insegura e desesperada. Quando o Espírito Santo é recebido em nossos corações, uma transformação radical se inicia (conversão), o homem sai de si mesmo, e, neste sentido, da influência escravizadora de Satanás, volta à comunhão (amizade) com o Pai – de onde jamais deveria ter saído – e ganha paz, liberdade, poder, verdadeira compreensão do que é amar e ser amado, e a vida eterna por herança com todos os seus tesouros. Em grego havia várias palavras para "amor". Jesus não está pedindo que sintamos storge, "afeição natural", nem philia, "amor amizade", nem muito menos eros, "amor romântico, erótico, sensual". A expressão usada por Jesus foi agape, que significa o amor perdão, misericórdia, graça, compreensão, paciência, sacrifício. O amor que Deus tem pela humanidade e que Jesus demonstrou diante dos seus oponentes, carrascos e executores. Um amor justo, mas compassivo, que não é atraído pelo mérito da pessoa amada, mas sim pelo fato de que o cristão recebe poder espiritual para "ser uma pessoa amorosa, misericordiosa"; e, portanto, pode suportar e perdoar os demais seres humanos e suas ofensas. Mateus mostra que as pessoas têm disposição natural para amar seu amigo e odiar seu inimigo (Mt 5.43), não é de admirar tantas guerras, terrorismos e violência assolando o mundo em nosso século assim como o foi na antigüidade. Jesus, entretanto, vai além, para o cerne da vontade de Deus, e revela que seu discípulo não pode ser seletivo quanto ao amor agape, mas deve amar inclusive o seu mais odioso e repugnante inimigo. E não basta refrear os atos hostis ou vingativos, é preciso "fazer o bem aos que vos odeiam". Não é difícil imaginar a expressão no rosto daqueles discípulos, judeus nacionalistas e guerreiros, ao ouvir seu mestre dizendo que deveriam ser pacíficos e cordiais com o dominador romano. E Jesus ainda acrescenta: abençoem os que os amaldiçoam; e orem (só orem) por aqueles que falam mal a seu respeito, espalhando mentiras e calúnias.

14 A expressão grega original transliterada siagon, aqui e em várias versões traduzida por "face", mais propriamente se refere ao queixo. Portanto, Jesus está falando de levar um soco no lado do queixo. A reação natural diante de um ataque como esse, é ferir o agressor da mesma maneira, aliás, como era previsto pela Lei (Êx 21.12-35). Jesus está se referindo à atitude; ou seja, ao sermos decepcionados, traídos ou mesmo agredidos, não devemos guardar amargura contra a humanidade e generalizar uma prevenção odiosa contra todas as pessoas; mas, sim, abrir-nos para novos relacionamentos (dar a outra face, mudar de lado). Contudo, oferecer – literalmente – o rosto para um outro golpe nem sempre será a melhor maneira de cumprir esse mandamento. Afinal, o próprio Senhor nos deu um exemplo ao ser golpeado no rosto (Jo 18.22-23). Quanto à capa (em grego: himation), que era a roupa externa usual, e a túnica (em grego: chiton), normalmente a veste interna, elas representam alguns de nossos mais importantes e necessários bens materiais. No entanto, Jesus nos ensina que – seremos felizes (benditos) – quando o amor agape nos controlar, a ponto de não reagirmos com ódio, ou qualquer tipo de retaliação, quando alguém – por qualquer motivo – nos privar ou roubar qualquer de nossos pertences, ainda que mais caros. Esse é um ótimo conselho diante do crescente número de furtos e assaltos em nossos dias.

15
Mais uma vez é importante observar o "espírito do ensino" de Jesus, e não querer ser mais real do que o Rei, literalizando as figuras de linguagem do mestre. Se os cristãos tivessem que agir, com total literalidade neste caso, haveria uma classe de "santos indigentes" perambulando pelas cidades do mundo inteiro, e outra classe de "incrédulos e prósperos ladrões". O que Jesus está enfatizando é que seu discípulo, por amor, jamais deve perder o sentimento de colaboração, ajuda e graça. O cristão deve estar sempre pronto a dar e a contribuir com todas as suas posses se for necessário. Entretanto, esse não é um ato meramente automático e sem reflexão, pois em muitos casos, dar não seria a melhor forma de amar. O verdadeiro amor – aquele que se preocupa com a real felicidade da outra pessoa – deve ser o juiz que decidirá se devemos dar ou reter em cada uma das situações da vida, e não a estima que temos por nossos bens. O verbo "dar" no grego original está num tempo contínuo, o que reforça a idéia de que este não é um ato ou impulso de generosidade ocasional, mas sim uma atitude habitual. Um estilo de vida. Jesus resume com sua regra de ouro: faça aos outros o que gostaria que as pessoas lhe fizessem. Esse é um princípio judaico ensinado desde muito antes do nascimento de Cristo. Entretanto, sempre fora pregado pelos sábios em sua forma negativa: "O que é odioso a ti, não faz ao teu próximo: isto é a Torá inteira, o restante é comentário disto" (Hillel em Shabbãth 31.a). Jesus foi o primeiro a dar um sentido totalmente positivo a este ensino áureo: não basta ao discípulo evitar atos que não gostaria que alguém praticasse contra ele. Os cristãos devem ser pró-ativos na prática do bem. Jesus ilustra sua exortação para que os cristãos sejam mais humanos (refletissem mais a imago Dei – imagem de Deus) do que os pagãos. Pois, até mesmo, pessoas que não professam qualquer religiosidade ou fé em Deus, praticam certas virtudes. Amam aos que as amam, retribuem o bem que lhes é feito e emprestam, especialmente se podem ter certeza de recebê-los de volta. O verbo original usado neste trecho indica um "emprestar sob juros". Se os cristãos assim procederem, não estão fazendo mais do que o mundo faz.

16 Em resumo, Jesus nos orienta a tomar seus mandamentos pelo lado positivo e de forma pró-ativa: "amai aos vossos inimigos, fazei o bem e emprestai". Como cristãos sempre devemos nos antecipar na prática e defesa do bem. O verbo grego original, aqui transliterado por alpelpizo, é usado no sentido de "não desesperar-se", e não com o significado de "sem esperar nenhuma paga", como aparece em várias versões bíblicas. Os cristãos devem emprestar, de forma justa, como um ato de louvor e serviço a Deus e ao próximo, sem nunca se desesperarem por nada e por ninguém. O Senhor nos conclama a nunca servir, tendo em vista uma recompensa – ainda que seja um galardão no céu – pois, se assim agirmos, estaremos simplesmente trocando o egoísmo e a vaidade material pelo espiritual. Deus é benigno e misericordioso até para com os ímpios, pois lhes proporciona suas boas dádivas, tais como o sol, a chuva, o solo fértil e a boa colheita, na expectativa de que essas almas – um dia – percebam seu amor e salvação. O sonho de Deus é que todos os seus filhos fossem como Jesus é em relação ao seu Pai. A perfeição de Deus deve ser nosso grande exemplo de vida (Mt 5.9,48).

17
O cristão não deve censurar, muito menos se entregar aos comentários sobre a vida de qualquer pessoa, com o propósito de destruir sua reputação e levar ao desprezo o seu caráter. O julgamento dos motivos íntimos de alguém, bem como qualquer vingança ou pena a serem aplicadas, pertencem ao Senhor (Rm 12.19). Entretanto, não estamos isentos da responsabilidade de desenvolvermos senso crítico sobre tudo e todos, bem como discernirmos quanto ao certo e o errado (vs. 43-45). Afinal, foi essa a escolha feita pela humanidade no jardim do Éden (Gn 3). Contudo, Jesus nos exorta a não agirmos com hipocrisia, como é próprio dos incrédulos. O perdão, em vez de condenação, revela o verdadeiro amor cristão em exercício. Jesus salienta que a pessoa perdoada e salva tem um coração aberto e generoso. Esse estilo de vida sensibilizará a Deus e aos homens, e uma correspondência de bênçãos será inevitável. E não apenas na mesma proporção, mas tão abundante que transbordará. Jesus tira essa metáfora a partir da maneira usada pela multidão que estava à sua volta naquele momento, para quantificar e qualificar os grãos colhidos. A expressão grega aplicada aqui e transliterada por kolpon, tem a ver com as expressões: "boa medida" e "generosamente", referindo-se a uma espécie de bolsa, que se fazia ao dobrar parte da veste externa ou com uma peça de roupa gasta, que ficava pendurada sobre o cinto, e era usada para guardar uma medida de trigo. Jesus relembra o antigo dito dos sábios judeus: "Há mais felicidade em dar do que em receber" (At 20.35).

18 Jesus faz uso de mais uma série de metáforas para ressaltar a importância de seus discípulos viverem acima da mediocridade dos religiosos formais. Este trecho adverte a todos nós sobre o perigo de condenarmos alguém, esquecendo-nos de que também somos réus de crimes semelhantes. Entretanto, a advertência maior é em relação aos líderes espirituais (Tg 3.1). Em primeiro lugar, somente aquele que anda na luz e pode ver com nitidez (Jo 8.12; 1Jo 1.7) consegue evitar os perigos do caminho e conduzir outros em segurança. Os jovens líderes devem ter paciência e humildade para esperar o devido tempo, quando serão – se aprovados por Deus e pela vida – semelhantes aos seus mestres. Da mesma maneira, o discípulo de Jesus deve estabelecer, como seu alvo pessoal, o ser semelhante a Ele. A expressão "bem instruído" (como aparece em algumas versões), vem do grego: katartizo, que tem um significado mais amplo: "tornar digno" ou "completo". É um termo normalmente usado para consertar algo que foi quebrado (Mc 1.19), ou no sentido de "suprir plenamente" (como quando o mundo foi "plenamente formado" – Hb 11.3). O discípulo de Jesus, tenha a experiência e a formação acadêmica que tiver, não pode relegar o mandamento do amor a segundo plano, acreditando que – de alguma forma – está acima do nível de servo que deve seu amor a Deus e ao próximo.

19 Jesus retoma outro antigo ensino dos rabinos judeus, com certo toque de humor, uma vez que usa a paródia para evidenciar seu ponto de vista. Retrata o hipócrita com um enorme tronco (trave ou viga) projetando-se do seu olho, enquanto busca, cuidadosamente, tirar uma partícula do olho do seu irmão. Freqüentemente as atitudes egoístas, arrogantes e preconceituosas dos seres humanos chegam a ser hilariantes, devido ao evidente contra-senso por elas transmitido. Contudo, a lição apresentada por Jesus é muito séria: a leve imperfeição ou erro de outras pessoas é freqüentemente mais notado por nós, do que um grande defeito ou pecado em nós mesmos. O verbo "reparar" vem do original grego blepeis que significa: atenção e observação prolongadas. Jesus nos exorta a um rígido auto-exame antes de nos lançarmos ao julgamento de qualquer um de nossos semelhantes.

20 Jesus frisa que o caráter de uma pessoa não pode ser alterado apenas por força de vontade ou pelas circunstâncias. Somente o novo nascimento, que é a invocação e a habitação do Espírito de Deus em nossa alma (Jo 3.5; 15.5,16), pode transformar a essência das pessoas e desenvolver um ser humano celestial (cidadão do Reino). Jesus nos faz lembrar do ensino do profeta Jeremias, sobre a maldade que reside no coração do homem (Jr 17.9), acerca da qual Paulo também nos adverte (Rm 3.23), para nos legar um princípio fundamental ao conhecimento da pessoa humana: "a boca fala do que está repleto o coração". Ou seja, nossas palavras revelam quem somos na realidade, em nosso íntimo. Por isso, mais do que um cuidado com a língua, precisamos avaliar corretamente o centro das nossas emoções e sentimentos (para os ocidentais modernos: o coração, mas no oriente antigo: os intestinos). Portanto, no amor e nos negócios é bom ouvir muito, e bem, antes de celebrar sociedade.

21 Alguns discípulos já mostravam sinais de falsidade e deslealdade, pois o chamavam formalmente de "Senhor" (em grego: kurios), que significa "mestre a quem se deve seguir com lealdade absoluta", mas não praticavam o que Ele lhes ensinava. É possível que Jesus tenha repetido este sermão em outra ocasião, porém com o mesmo sentido, pois em Mateus a diferença entre os dois homens da parábola, é que escolheram terrenos diferentes para construir (Mt 7.24-27), e aqui, diferem quanto à maneira de edificar sobre os terrenos. Embora Jesus esteja advertindo que um bom alicerce é vital nas horas de provação e dificuldades proporcionadas pela vida, seu principal objetivo é alertar para o teste supremo, no Juízo final, quando somente sobreviverão aqueles que estiverem firmados na Rocha, que é o Filho de Deus (1Co 3.11).

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Capítulo 7

1
Um centurião era um oficial militar romano, em geral, responsável por um grupamento igual ou superior a 100 soldados. O NT cita alguns centuriões notáveis, como esse homem de fé apresentado por Lucas (At 10.2; 23.17,18; 27.43). Embora gentio, os próprios líderes judeus admiravam sua honradez, cooperação e sensibilidade (vs. 5,6).

2 A fé que opera milagres, como a demonstrada por esse oficial romano, tem os seguintes componentes básicos: parte de um coração profundamente humilde, consciente da sua insignificância e pecado, da santidade e do poder de Deus. É uma fé pura, que não precisa da presença física de Jesus nem, muito menos, de outros elementos, mas apenas da sua Palavra (Tg 5.15-18). Também não se restringe a qualquer nacionalidade, cor ou raça. Lucas nos revela que a fé do gentio foi não apenas aceitável, mas elogiada pelo Senhor.

3 Em apenas duas ocasiões o NT registra que Jesus se admirou: nesta passagem - devido à fé que observou em um gentio - e, em Nazaré, por causa da incredulidade de muitos dos seus amigos e parentes judeus (Mc 6.6).

4 Naim localizava-se a cerca de três quilômetros, o oeste de En-Dot, aproximadamente a um dia de viagem, a pé, de Cafarnaum.

5 O vocábulo grego usado aqui para se referir ao Senhor é kurios. O único com poder para extinguir toda a tristeza e dor dos nossos corações, e expulsar a morte de nossas almas (1Co 15.55-57). O Senhor é movido pelo amor e por sua compaixão em relação à morte do ser humano. Jesus sabia que o ente humano fora criado para viver eternamente em harmonia com Deus; e, por isso, várias vezes, demonstra sua dor e indignação em relação à morte.

6 Conforme a tradição judaica, o jovem morto estava sendo conduzido num tipo de caixão aberto. Essa é a primeira de três ocasiões citadas nos evangelhos em que Jesus ressuscitou alguém, as demais são: a filha de Jairo (8.40-56), e seu amigo Lázaro (Jo 11.38-44). Quadrato, pensador e historiador, que viveu no ano 125 d.C, em suas cartas a Adriano, relata o fato de que algumas das pessoas curadas e ressuscitadas por Jesus ainda viviam em seu tempo e davam testemunho do Senhor. Curiosamente, vários milagres de ressurreição de mortos narrados na Bíblia, ocorreram devido à participação de mulheres de fé, humildes, corajosas e piedosas (1Rs 17.23; 2Rs 4.36; Jo 11.22,32; At 9.41; Hb 11.35).

7 Por mais de 400 anos o povo de Israel esperou pelo Messias prometido. João surge, vindo das regiões desérticas, com poder e unção de Deus para anunciar a chegada do Messias. Diante dos inúmeros milagres de Jesus por toda a Palestina, e de sua palavra e autoridade espiritual, as multidões começam a aclamá-lo como o Ungido (o Cristo), reconhecendo a presença de Deus em Israel após gerações e gerações de silêncio.

8 João estava no cárcere por ter colocado sua lealdade ao Senhor e sinceridade quanto à sua missão muito acima da subserviência aos poderosos desta terra. Estava preocupado e ansioso para ver o Messias, a quem anunciara durante toda a sua vida, e continuaria a fazer através dos seus discípulos, libertar Israel e estabelecer seu Reino.

9 Jesus respondeu para seu querido amigo João de maneira que ele, como profeta, entenderia bem e não teria qualquer dúvida: através dos sinais e maravilhas que os profetas do AT haviam dito que acompanhariam o Messias (Is 29.18-21; 35.5,6; 61.1 e Lc 4.18). Em nossos dias, essa confirmação é obra da fé, e entra em nossa alma com o Espírito Santo, quando – humildemente – aceitamos a Palavra de Deus e recebemos a Cristo em nossos corações sem restrições. Jesus exorta a João e aos discípulos dele a não duvidarem e com isso se "escandalizarem" (nos originais gregos: skandalizõ). O sentido original desta palavra tem a ver com a ação das gaiolas para caçar passarinhos, "skandalon" é exatamente o mecanismo que dispara o alçapão e prende o pássaro. Jesus receava que o tempo e a distância pudessem servir de "laço" skandalon para que seus amados amigos caíssem na terrível e fatal armadilha da dúvida e do desânimo.

10 Jesus explica aos seus discípulos e à multidão quem era João, pois muitos o achavam apenas um pregador excêntrico. Mas, Jesus faz isso de maneira muito especial. Começa perguntando o que as multidões tinham ido fazer no deserto. O povo tinha ido ouvir a palavra de João e, muitos, arrependidos, já haviam passado pelo batismo. Jesus informa que ele era autêntico e corajoso, como os maiores profetas de Deus. Não era uma vareta que se move ao sabor do vento das vontades de ninguém (Mt 14.3-5), nem tampouco um lacaio dos aristocratas; era um homem simples, talhado pela vida dura do deserto, onde havia se disciplinado ao extremo, e ensinava a todos quantos estavam afastados da santidade de Deus e necessitavam desesperadamente de arrependimento e salvação. Jesus conclui declarando que João era aquele a quem Malaquias anunciara há mais de 400 anos (Ml 3.1). Mais que um profeta, pois foi o precursor imediato de Cristo. Pregou sobre Ele e sua vinda e O revelou ao mundo. Jesus, entretanto, salienta que os nascidos de novo (Jo 3.1-21), gozam do direito de serem Filhos de Deus (Jo 1.12). E isso faz com que, o menor deles, seja maior do que qualquer membro da Antiga Aliança, da qual João foi o último e magnífico profeta.

11 A palavra de Jesus produziu em todas as pessoas e, particularmente, nos coletores de impostos, o reconhecimento dos seus erros e, ao mesmo tempo, da Graça Salvadora de Deus. Havendo sido justificados, se submeteram de bom grado aos princípios da Palavra e ao ensino de João.

12 "Doutores ou peritos" da lei foi a maneira como Lucas se referiu aos escribas e mestres da lei, que muitas vezes também pertenciam ao partido dos fariseus (5.17; 10.35,37: 11.45,52; 14.3 e em Mt 22.35). Esses teólogos e juristas judeus, que tiveram o privilégio de ouvir esse sermão diretamente dos lábios de Jesus, não conseguiram perceber que aquela Palavra de Deus era dirigida a eles, e demonstraram que o livre arbítrio capacita o homem a anular o propósito divino de conceder-lhe a salvação.

13 Em geral, as pessoas demonstram um comportamento infantil em relação à decisão de se consagrarem a Deus e à verdade. Elas agem como aquelas crianças da época de Jesus: se lhes era apresentado algo alegre, elas não se alegravam; se melancólico, não se sensibilizavam. Não haviam se associado a João com seu conservadorismo e rigidez ascética em relação à Lei e à devoção ao Senhor; nem tampouco aceitaram o convite de Jesus para um novo tempo de Graça, liberdade e plenitude espiritual como membros do Reino. Preferiram acusar João e a Jesus de falsos e endemoninhados (Jo 7.20; 8.48; 10.20) e seguiram seus próprios e danosos caminhos. Entretanto, Jesus deixa claro que os que são de Deus (Sabedoria), reconhecem as suas grandes obras e maravilhas e atendem ao seu chamado (Jo 10.1-18).

14 Para os judeus, uma refeição era um convite de alto valor social, representava um selo de amizade e reconhecimento entre os convidados. Como as mesas eram baixas, e ao redor havia uma série de divãs e almofadas, os convidados se reclinavam sobre eles, com os pés pra trás, a fim de degustarem as iguarias que eram trazidas por escravos ou empregados. Estes, além de servirem à mesa, cuidavam da recepção aos convivas, que incluía ungir com óleos e perfumes, lavar e enxugar os pés, especialmente dos mestres da Torá (Lei). Alguns senhores ou patrões, dispensavam seus criados da cerimônia de recepção e a realizavam eles próprios, numa atitude de elevada estima e consideração por seus amigos. Assim, a sala de refeição ficava, em geral, repleta de pessoas; umas comendo e descansando, outras, entrando e saindo para servir aos comensais. É neste contexto que uma mulher, desejosa de abandonar sua vida de prostituição e encontrar a paz (Jo 8.11), entra na sala em busca do Senhor, trazendo o melhor que possuía: amor no coração, fé no Filho de Deus, arrependimento, desejo de mudar e adoração (um frasco caríssimo de óleos aromáticos). Jesus estava reclinado, com os pés estendidos e distantes da mesa central. A mulher, não querendo se interpor entre Jesus e o fariseu anfitrião, preferiu, humildemente, ungir os pés de Jesus à sua maneira, mas com especial e genuína devoção. O frasco era feito de alabastro (uma rocha branca e fácil de moldar). Uma garrafa globular, com gargalo comprido, contendo ungüento (óleo) perfumado, cujo valor correspondia à cerca de 300 dias de trabalho braçal. O frasco (vaso) precisava ter seu gargalo quebrado, e usava-se todo o conteúdo numa única aplicação. Ato semelhante foi realizado por Maria de Betânia, poucos dias antes da crucificação (Jo 12.3).

15 Jesus é realmente o Salvador dos pecadores. A contradição é quase sempre marcante: para o fariseu, Jesus era um profeta e deveria agir com o rigor e o legalismo que ele (fariseu) esperava de um profeta. Para a mulher, prostituta e pecadora, carente de amor, perdão e consideração, Jesus era Deus encarnado, Senhor de misericórdias e da salvação; o único que tinha poderes para perdoá-la e purificar sua vida. E Jesus olhou para a alma daquele ser humano e além do seu pecado, viu uma filha de Deus, uma irmã e herdeira do seu Reino (Tg 2.1-5).

16
Jesus dá toda atenção à pobre mulher e a abençoa com paz. Nos originais, o verbo desta frase está no tempo presente do indicativo, o que descreve um estado de "constante paz interior com Deus". Literalmente: vai para dentro da paz. Os antigos rabinos costumavam dizer: vai em paz aos mortos e vai para dentro da paz aos vivos. É importante notar, que o amor da mulher não foi a causa da sua salvação, mas sim a conseqüência. O fruto de uma vida salva e consagrada ao Senhor. Só a fé em Jesus nos salva do Diabo, do mundo e de nós mesmos.


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Capítulo 8

1
Jesus havia concentrado seu ministério nas sinagogas em Cafarnaum. Mas agora voltava ao interior da Galiléia, ministrando em todas as cidades ao longo deste segundo percurso. Quanto à primeira viagem missionária ver: 4.43,44; Mt 4.23-25; Mc 1.38,39. Em relação à terceira viagem veja: 9.1-6.

2
Lucas salienta a importância das mulheres no ministério de Jesus, como discípulas e cooperadoras financeiras daquele que se fez pobre para nos fazer ricos (2Co 8.9). Maria Madalena, da cidade de Magdala, é normalmente confundida com a mulher pecadora do cap.7, e com Maria de Betânia (Jo 11.1).

3 Jesus passa a dirigir seu ensino mais aos realmente interessados em se tornarem filhos de Deus e, como discípulos (não apenas os Doze, mas todos – Mc 4.10), fazerem parte do seu Reino. Por isso, Jesus escolhe as metáforas e as parábolas para comunicar as grandes e surpreendentes verdades sobre o estilo de vida dos cidadãos do Reino (Mt 13.3; Mc 4.2). Embora as parábolas fossem histórias com fundos espirituais e morais fáceis de compreender, havia alguns elementos enigmáticos que careciam de esclarecimento. Essa era a maneira como Jesus filtrava e atraía para si apenas os mais interessados, aquelas pessoas que continuavam a segui-lo não apenas pelas curas milagrosas, mas para entender melhor sua mensagem, com todos os detalhes sobre como viver sob a plena direção de Deus. Nas parábolas, os inimigos de Jesus não conseguiram achar declarações claras e diretas para usar contra ele. A conhecida "parábola do semeador", é uma das três histórias enigmáticas registradas em todos os evangelhos sinóticos (Mt 13.1-23; Mc 4.1-20). As outras são: "a do grão de mostarda" (13.19; Mt 13.31,32; Mc 4.30-32) e da "vinha" (20.9-19; Mt 21.33-46; Mc 12.1-12).

4 A narração de Lucas é mais sucinta que a de Mateus (13.8), e a de Marcos (4.8). Entretanto, a lição central é a mesma: a quantidade da colheita depende da qualidade do terreno. Jesus exorta a todos que receberam capacidade espiritual para ouvir a voz de Deus, abram completamente seu entendimento e vivam como cidadãos do Reino, ainda que neste mundo materialista e injusto.

5
Muitos ensinos e conceitos de vida transmitidos por Deus aos seres humanos são considerados – especialmente pelos incrédulos – como grandes enigmas e mistérios. Dependemos das misericórdias do Senhor para recebermos a correta e clara revelação da verdade (Mc 4.11; Ef 3.2-5; 1Pe 1.10-12). A citação de Isaías (Is 6.9), não quer dizer que há uma disposição divina de vetar o acesso ao conhecimento da verdade para algumas pessoas. Mas essa é simplesmente uma triste constatação: todos aqueles que não estiverem dispostos a receber e incorporar a mensagem de Jesus perceberão o quanto a verdade (o caminho da paz e da plena felicidade) escapou ao seu entendimento. E seu destino final fica subentendido na citação complementar de Mt 13.14,15 (veja também Mc 4.12).

6
Denomina-se "Palavra de Deus" toda a mensagem proveniente diretamente do Senhor. O principal objetivo do Diabo, até o final dos tempos, será provar que Deus falhou em seus juízos e que a humanidade não quer nem precisa de Deus. O Diabo é o pai da mentira e da arrogância (uma forma de mentira), e por isso, embora saiba do seu final no lago do fogo eterno, juntamente com todos os seus correligionários, simpatizantes e "inocentes úteis" (aquelas pessoas que dizem que não se envolvem em religião, pois não matam, não roubam, e ajudam o próximo quando possível; consideram a si mesmas tão boas que não precisam de arrependimento, muito menos da salvação), não pode admitir que isso venha realmente a acontecer. O soberbo é também, espiritualmente, surdo e cego. Mas existe um outro tipo de pessoa, cujo coração (terreno para o plantio da Palavra) se anima com a mensagem de Jesus e com a amizade dos cristãos, e por algum tempo vive como crente. Entretanto sua fé é superficial e, portanto, não própria do salvo. É semelhante a fé que Tiago chama de "morta" (2.17,26) e "inútil" (2.20).

7
Há um coração e uma alma comparáveis à terra fértil e irrigada. O Senhor ressalta que só a perseverança na fé – mesmo em meio às lutas, derrotas e vitórias – é a marca do cristão, a prova da fé salvadora, que garante a vida eterna e proporciona os mais belos frutos em palavras e, sobretudo, em ações concretas (1Co 16.13-14).

8 Jesus estimula seus discípulos a proclamarem a verdade em todas as partes (11.33; 12.2; Mt 5.15). A luz corresponde à semente (11), que é a Palavra de Deus. A pessoa que irradia a luz do Evangelho – através de uma conduta exemplar e pela comunicação dos princípios bíblicos – cumpre bem seu propósito. Entretanto, para manter uma vida reluzente é fundamental: ouvir e obedecer (41).

9
A verdade (semente) não assimilada, e, portanto, não colocada em prática no dia-a-dia será perdida. E mais, tudo quanto foi conquistado, porém sem a compreensão da verdade, igualmente se perderá (19.26). Os discípulos deveriam dar toda a atenção à prática da Palavra de Deus, não apenas para si próprios, mas especialmente por causa daqueles que estão perdidos e precisam da graça do maravilhoso conhecimento do Senhor em suas vidas (Mc 4.24; Tg 1.19-22).

10 Alguns estudiosos questionam o fato de Jesus haver tido irmãos consangüíneos, filhos de Maria, sua mãe. Contudo as provas são incontestes neste caso (Mc 6.3). Entretanto, nem o mais estreito parentesco humano é maior e mais importante do que a filiação de uma pessoa a Deus e seus relacionamentos dentro da família de Cristo. Por isso, os cristãos costumam se chamar de "irmãos" (Mc 3.21,31,32; Jo 7.5).

11
Jesus notou a participação das forças malignas naquela tempestade inusitada, exatamente quando ele e seus discípulos rumavam para a terra dos gerasenos (gadarenos ou ainda gergesenos). Um povo gentio, que vivia isolado, e que tinha como fonte de renda a criação de porcos, animal considerado impuro pelos judeus em todos os sentidos. Com esse milagre, Jesus confirma mais uma vez, seu poder sobre todas as forças impessoais. Ele as criou e as controla (Jo 1.3; Cl 1.17). "Onde está a vossa fé?" Se estiver depositada em uma capacidade ou criação humana, como um bom barco com navegadores experientes, por exemplo, poderá afundar. Se estiver na dedicação e nas obras morais e beneficentes, com certeza, as forças contrárias serão maiores. Entretanto, se estiver firmada em Cristo: tranqüilize-se e comece a desfrutar da bonança (Ef 2.8,9).

12 Mateus faz referência a dois endemoninhados (Mt 8.28). Entretanto, Marcos e Lucas ressaltam a ação daquele que se adiantou para interagir com Jesus (Mc 5.2). Esses homens, vítimas do domínio absoluto do demônio, foram ao encontro de Jesus para maltratá-lo, no entanto, ao se aproximarem do Filho de Deus, prostraram-se diante do poder do Altíssimo e lhe suplicaram por misericórdia. Essas pessoas atormentadas viviam ainda mais isoladas, em lugares desolados que serviam de cemitérios (Mc 5.3).

13 Os gentios, em geral, se referiam ao Senhor como "Deus Altíssimo" (1.24,32; 4.34; Gn 14.19; At 16.17). O reino de Satanás não tem absolutamente nada em comum com o Reino de Deus (11.14-22), por isso o questionamento dos demônios, haja vista que eles dominavam aquela região e, mais especificamente, aqueles homens. Jesus pergunta o nome do homem com quem está falando, mas quem responde é "Legião" (palavra usada para identificar uma corporação romana com até 6000 soldados), o chefe de uma multidão de demônios que havia tomado o corpo daquela pessoa; numa demonstração clara de posse e comando daquela vida, cuja própria identidade havia sido confiscada.

14 O Abismo (lugar de confinamento de Satanás e dos espíritos malignos), sempre será o destino final dos demônios e das almas incrédulas (Ap 9.1; 20.3). O desejo invejoso de Satanás é controlar a vida dos seres humanos, e isso ele buscará de todas as maneiras até o final dos tempos. A criação de porcos era uma atividade econômica expressamente proibida pela Lei de Deus em todo o território israelense (Lv 11.7-8). Entretanto, essa região, pertencia a Decápolis, território predominantemente gentílico. Os demônios e a população do lugar perceberam que Jesus e suas palavras e maravilhas poderiam alterar todo o modus vivendi (modo de vida) da cidade. Contudo, não foi Jesus quem matou os porcos, mas sim os próprios demônios, que no ímpeto de se afastarem da santidade de Deus, para dominar e destruir desvairadamente, voltaram para o abismo e se afogaram no lago. Uma clara ilustração do Juízo final.

15 O termo grego original: esõthe, é muito rico em significados paralelos, podendo ser traduzido como: "salvar"; "curar"; "resgatar" e "libertar". É a mesma expressão usada várias vezes no NT para descrever o novo relacionamento de ser humano "resgatado" por Deus. No verso 48 temos um sentido duplo: salvação em relação à morte física e espiritual.

16 Contraste entre o pedido dos gerasenos e do homem liberto. A população valorizou os bens materiais acima dos espirituais. Ficaram com medo de perder sua fonte de renda, segurança e da destruição que Jesus poderia promover na cidade. E preferiram permanecer oprimidos pelas forças malignas. O geraseno, salvo e curado, reconheceu em Jesus o Filho de Deus e a fonte da vida; valorizou sua salvação acima de todos os bens, e teve pavor de voltar à vida antiga. Em seu coração, disposto a seguir e servir a Deus, aceitou com alegria a orientação missionária de Jesus e, a caminho de casa, pregou o evangelho em várias cidades por toda Decápolis (liga das cidades livres, localizadas além do rio Jordão, caracterizadas pelo alto nível de cultura grega, portanto, gentios).

17 Uma hemorragia crônica (fluxo de sangue) havia tirado a saúde e excluído aquela mulher da sociedade (tornando-a impura segundo a Lei – Lv 15.19-30), por doze anos (Mt 9.20; Mc 5.25). Jesus sente e abençoa a fé demonstrada por ela, curando sua enfermidade, e a restituindo ao convívio familiar e social através do testemunho público. Para uma pessoa que passou tanto tempo sendo desprezada e humilhada, Jesus reserva uma palavra especial: "filha", expressão de ternura que não aparece em nenhuma outra citação de Jesus nos evangelhos. É a confiança na esperança (Jesus) que produz a ação (17.19), e uma paz que independe das circunstâncias (7.50).

18
Jairo (nome que significa em hebraico: "Deus dará luz"), era responsável pela sinagoga local e um homem piedoso. Aparentemente o atraso de Jesus em socorrer a filha de Jairo cooperou para sua morte. Incidente semelhante ocorreu com Lázaro, um grande amigo de Jesus (Jo 11.5,6). Esses são dois grandes temores humanos: o tempo e a morte. Para Deus, entretanto, estes aspectos limitantes da vida não existem. A razão nos encoraja a crer no possível; a experiência afirma que ninguém voltou do lugar dos mortos revelando detalhes sobre esse caminho (Lc 16.30); as emoções nos fazem sentir preocupados e assustados em relação à morte (Sl 55.4). Mas Jesus nos afirma que confiando (confiança é a palavra hebraica para fé) nele, como nossa única e suficiente esperança, testemunharemos que o finis da morte (o final de tudo) se transforma no prelúdio da vida verdadeira: plena e eterna (Jo 11.25).

19 Jesus faz uma grande diferença entre a morte eterna e o estado de descanso temporário da alma, fora do corpo, enquanto aguarda a volta de Cristo, e o final da era humana como a conhecemos hoje. A morte para Jesus é o estado de eterno banimento da comunhão e das misericórdias de Deus. Destino este reservado para Satanás, seus anjos e todos aqueles que rejeitarem a graça salvadora do Senhor durante suas vidas. Sendo assim, Jesus adverte a Jairo de que sua filha não estava (permanentemente) morta. Mas, como ocorre com "os mortos no Senhor", estava "adormecida" ou "descansando" (1Ts 4.13), na expectativa da ressurreição. Jesus demonstra a veracidade das suas palavras, despertando a menina da morte, concedendo-lhe uma ressurreição antes da ressurreição definitiva, e comprovando, uma vez mais, que para Deus não há impossíveis (Mt 5.38; Jo 11.11-14).

20
Jesus sempre se preocupou com a maneira como as pessoas o estavam recebendo, bem como a sua mensagem. Ele não queria que o povo o seguisse de forma utilitarista, ou seja, somente a troco dos benefícios físicos que Ele proporcionava aos que nele criam: saúde física e emocional, libertação dos demônios, segurança, alimentação (Jo 6.26) e até ressurreição. Pois todos querem ir para o céu, mas ninguém deseja morrer (Lc 9.24). Desde a Criação no Éden, o plano de Deus é que o ser humano lhe fosse um amigo leal, adorando-o como seu Criador e Pai. Uma comunhão que resulta em glória a Deus (Jo 5.44; Fp 3.11).


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Capítulo 9

1
O Cristo (forma grega de: o Messias, em hebraico), Soberano do Novo Reino, compartilha seu "poder" (em grego: dunamis), e sua "autoridade" (em grego: exousia), com seus "apóstolos", termo que em grego significa: "enviados em lugar daquele que os comissionou", ou seja "embaixadores". Essa é uma nova fase do ministério de Jesus, quando envia seus plenos representantes para colocarem em prática o estilo de vida, proclamação, curas e maravilhas que haviam visto diariamente em sua pessoa (Mt 9.35). Essa foi também a terceira viagem pelas terras da Galiléia realizada por Jesus e seus discípulos (8.1).

2 A estratégia espiritual de Jesus para vencer o Diabo e o mundo – e que durante muito tempo foi seguida pela Igreja primitiva – consistia em: sair em missão de proclamação do Evangelho por todo o mundo (Mt 28.16-20); manter um estilo de vida simples sem preocupações materiais (Mc 6.8); confiar na generosidade da provisão divina; ter senso de urgência, remindo o tempo e aproveitando bem todas as oportunidades para apresentar a Salvação em Cristo (1Co 7.29); fixar a base do seu ministério numa casa hospitaleira – e não mudar de casa, buscando melhores acomodações. Jesus deu grande ênfase ao ministério da "Igreja nas casas" (Rm 16.5; 1Co 16.19; Cl 4.15; Fm 2).

3 Sacudir a poeira das sandálias era um ato simbólico praticado pelos judeus piedosos, ao retornarem à Palestina, e que neste contexto significa uma expressão de relações cortadas, responsabilidade cessada, e um eloqüente e derradeiro apelo ao arrependimento. Esse passou a ser um sinal de total repúdio pela rejeição da mensagem de Deus (10.11; Mt 10.14; At 13.51).

4
O objetivo principal de Jesus é trazer todos os seres humanos para o Seu Reino, visto que a humanidade está afastada de Deus, perdida e condenada à morte eterna (Rm 3.23), e essa missão deve ser realizada levando em conta todas as necessidades básicas das pessoas. O amor não separa o bem-estar espiritual e eterno do material e presente (1Jo 3.17).

5
Lucas não informa os detalhes sobre a morte de João Batista (Mt 14.1-12; Mc 6.17-29), que ocorreu naquela época. Entretanto, Herodes Antipas, filho de Herodes, o Grande (Mt 2.1-19), perturbado pelo medo e remorso, ansiava ver se Jesus era João Batista, que ele assassinara (13.31; 23.8). Entretanto seu desejo de ver a Cristo só se concretizou no julgamento de Jesus (23.8-12). Somente as pessoas que recebem a Cristo em seu coração, por meio de fé pura e sincera, ganham a capacidade de vê-lo (9.27; 13.35; Jo 11.40). O "crer" sempre precede o "ver" no Reino de Deus. Tanto Herodes, quanto os judeus e qualquer outra pessoa que procure um sinal de Deus, são exortados – antes de tudo – ao arrependimento sincero e à entrega da alma aos cuidados do Senhor (Mt 12.38-42).

6 A multiplicação dos pães e peixes, além da ressurreição de Jesus, é o único milagre narrado nos quatro evangelhos (Mt 14.13-21; Mc 6.30-44; Jo 6.1-15). Esse evento marca o clímax do ministério do Senhor na Galiléia. Lembrava os judeus sobre o milagre do maná no deserto. Identificava a Jesus como sendo o cumprimento da profecia de Moisés (Dt 18.18; Jo 6). Por isso, a Igreja primitiva reconheceu neste milagre um paralelo com a última Ceia (22.19; Jo 6.48-58), fazendo com que os discípulos de Cristo sejam o Novo Povo de Deus que, pela Páscoa e o Êxodo (saída do mundo pecaminoso), são conduzidos para a eterna Terra Celestial (Hb 3 e 4).

7
Lucas dá especial atenção ao relato de Jesus em oração (conversando com o Pai): Antes do batismo; da escolha dos Doze; da confissão de Pedro; da transfiguração e da traição.

8
Pedro era o porta-voz natural dos Doze. Há séculos, o Messias era aguardado com ansiedade (Cristo é a tradução grega do termo hebraico: Mashiah), que significa: "o Ungido". Expressão que na antiguidade se referiu ao Sumo Sacerdote (como na Septuaginta – Lv 4.5), e depois designou o Rei (1Sm 2.10,35; Sl 2.2; Dn 9.25), e foi interpretado pelos doutores e mestres judaicos – ao tempo de Jesus – como o Salvador e Libertador prometido, cuja vinda era considerada iminente.

9 O povo judeu nutria há séculos uma falsa expectativa em relação à figura do Messias. Esperavam um revolucionário, guerreiro e estrategista militar, que libertaria Israel do império romano e instalaria seu reino de glória e poder a exemplo de Davi. Portanto, em primeiro lugar, Jesus se revelou aos Doze e esforçou-se para que eles compreendessem bem quem Ele era e qual a sua missão na terra. O próximo passo era comunicar essa revelação ao seu povo antes de Jesus se identificar publicamente (Mt 8.4; 16.20; Mc 1.34). Jesus gostava de se apresentar como "o Filho do homem", pois essa expressão no original é uma clara indicação do Messias profetizado em Daniel 7.13. A figura do Servo Sofredor (Is 53), é sobreposta à imagem do Messias (Mt 8.20) para retratar adequadamente a pessoa e a obra de Jesus.

10
Seguir a Jesus exige sacrifício do ser humano: consagração, abnegação, dedicação, disciplina e absoluta obediência voluntária à Palavra de Deus. Lucas ainda dá ênfase ao aspecto da continuidade, ou seja, viver assim "dia após dia", haja o que houver. A imagem da crucificação era comum e clara para todos os discípulos. Era a maneira como o império romano executava os traidores, criminosos e revolucionários da época. Contudo, Jesus assegura ao fiel, que ainda que lhe seja necessário dar a própria vida em holocausto por amor a Deus, uma nova vida de paz e felicidade lhe será outorgada. Pessoas que aceitam o convite do Senhor e decidem abandonar uma vida mundana (morrer para o mundo), passando a dedicar-se à obra de Cristo, são grandes testemunhas desse milagre (viver para Cristo – Gl 2.19-20; Fp 1.21). Nenhuma outra declaração de Jesus recebeu tanto destaque por parte dos quatro evangelistas (Mt 10.38,39; 16.24,25; Mc 8.34,35; Lc 14.26,27; 17.33; Jo 12.25).

11 A palavra grega heos (morte antes...), indica que Jesus não se refere aqui à sua segunda e gloriosa vinda (pois não haverá morte depois – 1Ts 4.17). Jesus está falando da manifestação do início de um novo tempo do Reino: na ressurreição de Cristo e no dia do Pentecostes. Alguns dos que ali estavam veriam o Rei ressurreto (1Co 15.5-6), enquanto os incrédulos só o verão em seu retorno triunfal para o Juízo (Mc 14.62). Pedro, João e Tiago tiveram uma antecipação desta visão gloriosa cerca de uma semana depois.

12
Conforme estudos de respeitáveis arqueólogos e historiadores cristãos, o lugar onde ocorre o milagre da transfiguração é o monte Hermom, cujo cume coberto de neve, acima de 2.740 metros de altura (Mc 9.2), pode ser avistado de muitas partes da Palestina, brilhando como ouro polido à luz do sol. Moisés e Elias, os grandes representantes da Lei e dos Profetas, aparecem em glória, porém não como espíritos imateriais, e sim em forma corpórea como Jesus estava. Elias havia sido trasladado corporeamente para o céu (2Rs 2.11), e o testemunho de Judas (Jd 9) dá a entender que Moisés fora ressuscitado da morte. A obra de Moisés havia sido completada por seu discípulo Josué, assim como a de Elias por seu discípulo Eliseu (uma variação do nome Josué). Agora estavam conversando com Jesus (nome grego correspondente a Josué, que em hebraico significa: "Deus Salvador" ou "Jeová é Salvação"), e Lucas nos informa que o assunto era o exodon (em grego: a partida) de Jesus (2Pe 1.15): a obra redentora de Cristo na cruz (sua morte) e, conseqüentemente, a sua ressurreição, ascensão e glória final. Esse encontro extraordinário, presenciado por três apóstolos do Senhor, indica o momento exato do cumprimento de tudo quanto o AT prenuncia. A tipologia do Êxodo fornece o pano de fundo; Jesus supera a Moisés na formação e no governo do Novo Israel de Deus, por ser o Filho (v.35; Hb 2.9,10). O título "Escolhido" aparece nos rolos do mar Morto, ecoando Is 42.1; 23.35. O termo "Escolhido" corresponde à expressão "Amado" (Mt 17.5; 2Pe 1.17). Jesus, mediante o seu "êxodo" livrou o seu povo (seus seguidores) da escravidão do pecado que domina o nosso sistema mundial, levando a bom termo a obra tanto de Moisés quanto de Elias (1Rs 19.16).

13 O milagre da transfiguração ocorreu à noite. No outro dia, após o grande êxtase no monte, Jesus e os discípulos descem para o vale e reencontram a vida normal, cotidiana, com suas aflições, inquietações e necessidades básicas. Toda essa seqüência de acontecimentos demonstra a necessidade do serviço cristão ser uma extensão do culto. A permanência no monte, na contemplação ou busca de experiências, sem o esforço prático para melhorar a vida das pessoas no vale, e vice-versa, resulta em falta de poder e autoridade. A possessão demoníaca afeta suas vítimas de maneiras diversas (Mt 17.15; Mc 9.17; 4.33; 8.28; 13.11,16). Na vida deste jovem, o espírito maligno catalisou os efeitos nocivos da epilepsia amedrontando e confundindo as pessoas, e os próprios discípulos de Jesus que haviam ficado no vale.

14
As pessoas estavam vendo os milagres de Jesus como maravilhas e oportunidades de se livrarem de situações incuráveis ou insolúveis, mas não conseguiam ver nos prodígios das palavras e das realizações de Jesus os sinais da presença de Deus na terra, entre seu povo. O lamento de Jesus é contra a incredulidade de todas as pessoas que se aproximam de Deus apenas para testar seu poder, para assistir a um exemplo da ação extraordinária e especial do Criador. Esquecidas de que precisam de arrependimento, buscam apenas uma solução rápida, prática e a baixo custo para seus problemas imediatos (Dt 32.5; Nm 14.27).

15
Jesus refletia de maneira tão clara a imagem de Deus (imago Dei), que as multidões admiravam nele a sublimidade e a realeza do Senhor (2Pe 1.16). Contudo, Jesus não se deixava envolver pelos louvores e bajulações do povo, e procurava sempre lembrá-los de que rumava resoluto para entregar sua vida como holocausto para a salvação da humanidade, a quem sempre muito amou (Jo 3.16).

16 A grandeza no Reino de Deus é proporcional ao serviço humilde, sincero e totalmente em louvor ao Senhor. É o próprio significado da cruz (44,45; Fp 2.7,8). Essa polêmica surgiu algumas vezes entre os discípulos (22.24; Mc 10.35-45). O verdadeiro e desinteressado amor é provado por sua operação em favor daqueles que são considerados pela sociedade como os mais insignificantes. Esse amor será exaltado e premiado por Deus.

17
João responde (literalmente no original grego: "respondendo") ao esclarecimento do Senhor sobre a grandeza de servir com humildade no Reino, com mais uma questão: como pode alguém estranho ao seu grupo expelir demônios em nome de Jesus (especialmente quando alguns discípulos não conseguiram)? Não é a posição oficial que mede a grandeza de uma pessoa, mas sim a qualidade do seu propósito. Para os discípulos, preocupados, naquele momento, com a hierarquia e o fluxograma do ministério, não bastava que aquela pessoa, possivelmente conhecida de Jesus (50), estivesse realizando prodígios em nome do Senhor, era fundamental que fosse membro do grupo e se comportasse segundo "os estatutos" e a doutrina comuns. Esse tem sido, há séculos, o erro de muitos cristãos. Jesus não diz que o homem era contra Ele, mas adverte que se aquela pessoa não os estava prejudicando, certamente havia cooperado com eles de alguma forma, pois trabalhava pela mesma causa. Não pode haver neutralidade na guerra contra o mal. Todo o homem que se opõe aos demônios e às suas influências, em nome de Jesus, deve ser bem recebido, e não alvo de inveja e oposição.

18 Começa neste ponto a seção central do livro de Lucas que é concluída em 19.44 e focaliza especialmente o ensino de Jesus. Lucas usa literalmente a expressão: "firmou o rosto para ir para Jerusalém", numa alusão a Is 50.7, ressaltando a determinação inabalável de Jesus em cumprir sua missão até o fim (13.22). Essa viagem a Jerusalém não é a mesma onde ocorreu a crucificação, porém marca o início de um período de ministério na Judéia, cuja cidade principal era Jerusalém.

19 Tiago e João eram conhecidos como "filhos do trovão" (Mc 3.17). À semelhança de Elias desejaram mais do que apenas "sacudir o pó de suas sandálias" (2Rs 1.9-16). Entretanto, Jesus os alerta para o fato de pertencerem a outro espírito e demonstra o tipo de amor que estava ensinando aos seus discípulos (Mt 5.44). Para alguns estudiosos, partes dos versos 55 e 56 foram introduzidos por copistas ao longo dos primeiros séculos. No entanto, o Comitê de Tradução da KJ decidiu manter o texto inalterado como vem sendo publicado originalmente desde 1611 e sobre os quais as novas descobertas nada apresentam em contrário.

20
Quais são as pessoas que não podem seguir a Jesus? As que valorizam a segurança e o conforto acima do Senhor. As que dão total preeminência à família e aos amigos, muito acima do Salvador. As que permanecem contemplando o que deixam para trás (a velha vida) enquanto caminham (Gn 19.26; Ef 5.17-24).

21
Conforme as tradições e rituais fúnebres observados no judaísmo, se o pai daquele homem já estivesse morto, ele não poderia estar ali no meio do caminho, deveria estar se ocupando de todos os detalhes e cerimônias que envolviam um sepultamento judaico naqueles dias. O que o homem pede na verdade, é um tempo para ficar em casa até que seu pai morra, para depois, mais maduro e livre de certas obrigações, poder avaliar com calma as vantagens e desvantagens de aceitar o convite de Cristo. Mas Jesus e o Reino têm urgência e necessitam de pessoas dispostas e resolutas. Jesus usa um jogo de palavras (em grego, logioni, aplica-se duplamente ao sentido, físico e espiritual, da palavra: "morto"), para chocar aquele homem com a verdade de que restarão muitas pessoas no mundo que não atenderão ao chamado de Deus para a vida eterna, e que, portanto, aos mortos espirituais caberá cuidar dos rituais de um mundo que perece (Ef 2.1).

22 Esse trecho bíblico (9.57-62) se passa justamente "ao longo do caminho". Enquanto Jesus viajava, Lucas nos conta alguns dos muitos casos de pessoas que se apresentaram ou foram convidadas a seguir Jesus e fazer parte do Reino de Deus. Nos três exemplos narrados por Lucas, todas as pessoas tinham uma razão para adiar ou recusar esse compromisso. Claramente tiveram boas intenções, mas não haviam percebido a natureza das exigências que a nova vida e o Reino faz aos seres humanos que habitarão a Nova Jerusalém. A missão de Cristo é mais urgente do que aquela que Elias estabeleceu para Eliseu (1Rs 19.20). Todo trecho mostra que Jesus não exige aquilo que Ele mesmo – enquanto ser humano – não praticou ou suportou. Assemelhar-se ao Mestre é o grande alvo e o preço do discipulado (6.40).


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Capítulo 10

1

Os melhores e mais antigos manuscritos gregos de Lucas, nos informam que Jesus enviou 72 de seus discípulos (uma alusão a Nm 11.16-17), em duplas (9.1-6; Mc 6.7; At 13.2; 15.27,39,40; 17.14; 19.22), com a missão de proclamar o Reino de Deus e fazer novos arautos do Senhor (discípulos). Lucas salienta a universalidade do Evangelho (16 vezes), para os pecadores de todos os povos e raças, tanto samaritanos como gentios e os próprios judeus (24.47). O número de discípulos demonstra que Jesus tinha um grupo de seguidores fiéis de tempo integral muito maior do que os Doze mais próximos, e uma agenda repleta. Orientações semelhantes foram dadas por Jesus aos Doze (Mt 9.37,38; 10.7-16; Mc 6.7-11; conforme Lc 9.3-5).

2
O campo (a seara) é enorme e a grande missão é fazer discípulos de Cristo em todas as nações, pois o Dia do Juízo se aproxima (Mt 13.39, Jo 4.35; Ap 14.15). Esse é o desafio missionário: a grandeza da plantação e a urgência da missão. A oração contínua para que Deus mande servos dedicados à obra. O "Ide" de Jesus é um apelo para todos os discípulos, cada qual com seu dom e campo de ação (Rm 10.15; Rm 12).

3 A estratégia de Cristo é completamente diferente de qualquer outro imperador. Seus discípulos devem ser totalmente dependentes do Onipotente Pastor na conquista pacífica do território de posse do inimigo.

4 Os discípulos não deveriam se preocupar com o sustento, muito menos com o acúmulo de bens. Não levariam sacos de viagem (alforjes), nem um par extra de sandálias. Sua manutenção viria de Deus, através de pessoas generosas, que cuidariam plenamente de suas necessidades. As saudações orientais tradicionais eram (e ainda o são em muitos lugares) prolongadas, consumindo horas de conversa. Jesus adverte a todo cristão sobre o sentido de urgência e otimização do tempo. O tradicional shalom, saudação hebraica que significa "paz e bem-estar", passa a ter um sentido ampliado e mais profundo: reconciliação do pecador com Deus (Rm 5.1,10; Ef 2.16; Cl 1.21,22).

5 Ordem de Jesus citada em 1Tm 5.18 como Escritura, numa indicação clara de que o livro de Lucas já era considerado inspirado (canônico). Os líderes cristãos devem receber justo sustento de todas as suas necessidades. Entretanto, não devem mudar de casas (igrejas ou comunidades) apenas por interesses materiais ou melhor remuneração.

6
A proximidade do Reino tinha a ver com a pessoa de Cristo e de seus arautos (missionários), não em relação ao tempo (Mc 12.34). Apesar de Sodoma ter sido tão pecaminosa que Deus precisou destruí-la (Gn 19.24-28; Jd 7), o povo que ali estava tendo o privilégio de ver e ouvir a Jesus, e os seus discípulos, estava contraindo culpa ainda maior, devido à sua incredulidade, a ser cobrada no Dia do Juízo final. Tiro e Sidom, cidades gentílicas da Fenícia, ainda não haviam tido a oportunidade de receber a mensagem de Cristo e observar seus milagres, oportunidade dada à maior parte da população da Galiléia. Privilégios maiores sempre resultam em maior responsabilidade.

7 Cafarnaum foi o centro do ministério de Jesus na fronteira norte da Galiléia (Mt 4.13). Seus habitantes tiveram todas as chances para verem e ouvirem a Jesus e, a maioria, não se arrependeu. Portanto, maior será sua condenação. A palavra "inferno" vem do grego transliterado haidou ou "hades", que corresponde à expressão hebraica do AT sheol, a qual significa: lugar dos mortos ou sepulcro.

8 Os discípulos receberam poder e autoridade do Espírito de Deus, pela Palavra de Jesus, para expulsar demônios de todos os tipos e derrotar a Satanás e seus terríveis ataques. Esse momento histórico, contemplado pelo Senhor (v.18), representou um marco no ministério de Jesus com seus discípulos em relação ao estabelecimento do Reino de Deus. Jesus aproveita a euforia dos discípulos para lhes advertir sobre o grande perigo da arrogância, soberba e orgulho, que acomete a todos aqueles que se deixam inebriar pelas glórias do sucesso. Assim se deu a queda de Lúcifer, nome original do Diabo, em hebraico transliterado: helel, que significa: "glorioso", "luzente"; vocábulo que a Vulgata latina traduziu pela expressão: "estrela da manhã". Evento este, de tremendo impacto no universo e testemunhado por Jesus Cristo no céu (Is 14.12). Jesus previne aos seus discípulos para manterem a humildade e o louvor a Deus por suas virtudes e realizações. Caso contrário, correm o risco de terem o mesmo destino do império babilônico, rebaixado ao nível do pó, depois de ter sido exaltado como o mais poderoso entre os poderosos reinos da terra. O próprio rei da Babilônia (região onde hoje se localiza o Iraque) foi usado pelos profetas do Senhor como prefiguração da "besta", que se reerguerá e comandará a Babilônia dos últimos dias (Ap 13.4; 17.3; segundo a descrição do dirigente de Tiro em Ez 28). O próprio Satanás, ao admirar e exaltar seus atributos pessoais – deixando de considerar que todos lhe foram concedidos por Deus, e para Sua glória – cogitou ser semelhante a Deus e por isso foi execrado da presença do Senhor, banido dos céus e rebaixado às regiões do inferno com a violência e a velocidade de um raio. Portanto, a Salvação do ser humano é mais importante que o poder para realizar maravilhas e vencer o Diabo. A Salvação nos mantém humildes diante dos grandes feitos, e nos encoraja quando erramos e caímos. Ela registra o nosso nome no céu (Sl 69.28; Dn 12.1; Fp 4.3; Hb 12.23; Ap 3.5).

9 Uma das principais características do evangelho escrito por Lucas é mencionar a alegria e felicidade por mais de 20 vezes, o cântico e a glorificação de Deus (1.64; 2.13; 2.28; 5.25; 7.16; 13.13; 17.15; 19.37; 24.53). Nossa maior alegria não deve estar nas coisas nem nas pessoas, mas no fato de termos sido eleitos para a Salvação pelo amor onisciente de Deus, condição privilegiada, que jamais será anulada (Ef 1.4), a qual devemos honrar. Jesus demonstra seu grande júbilo (em grego: agalliaõ, que significa: "exultação", "demonstração pública de gozo profundo"). O motivo de tamanho contentamento de Jesus foi testemunhar a revelação da justiça e bondade de Deus para com os humildes em detrimento dos arrogantes e soberbos. A alegria da redenção (1.14,47; At 2.26; 1Pe 4.13), da qual o Espírito Santo é o agente do gozo espiritual (Gl 5.22 e Fp 4.4).

10 Deus entregou a Seu Filho, Jesus, a chave da reconciliação definitiva entre o Criador e a humanidade: o Evangelho (1Co 15.1-3). Essa revelação não vem dos pais (tradição judaica), mas do Pai em Cristo (Jo 14.6-11).

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A fé abre a visão para a verdade, a realidade de Jesus, o Cristo (Messias), e o Reino. Enquanto, o pecado, cega a humanidade (Jo 9.39-41).

12 A palavra grega transliterada nomikos, significa originalmente: "advogado", como consta da Bíblia King James desde 1611. As versões posteriores usaram expressões como "intérprete", ou ainda "perito na lei". Tratava-se de um teólogo judeu, autoridade na Lei (a Torá) de Deus (11.45) e que nesta passagem procura submeter Jesus à prova (Mt 4.7; Tg 1.3), mas é provado pelo Senhor através de seus próprios argumentos legalistas.

13 Em outra situação Jesus agrupa os mandamentos formando um só (Mt 22.35-40; Mc 12.28-32 com base em Dt 6.5; Lv 19.18). Se considerarmos que o amor tem quatro aspectos (coração, alma, forças e entendimento ou inteligência – como aqui e em Mc 12.30), ou apenas três (Dt 6.5; Mt 22.37; Mc 12.33), o princípio maior a ser observado é a ampla e irrestrita dedicação do nosso ser a Deus. Esses dois mandamentos resumem toda a Lei (Rm 13.9). Como – após a Queda (Gn 3) – tornou-se impossível ao ser humano, cujo pecado habita no coração, atingir esse padrão; Cristo o fez por nós: a dupla Lei do Amor (1Jo 4.7-19).

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O advogado busca demonstrar o valor de sua questão. No entanto, oferece ainda mais elementos para que Jesus destrua os argumentos da Lei e revele a verdade da Graça. A autojustificação ambicionada pelo mais rigoroso fariseu (18.9-14; Fp 3.6) é negada na parábola do Bom Samaritano. A justiça do sacerdote, que representa a suprema autoridade religiosa, e a do levita (que trabalhavam em parceria no templo a serviço de Deus) ainda que zelosos no cumprimento da Lei, omitem o verdadeiro "amor de Deus" (11.42) e passam "de largo" (pelo outro lado da estrada) para evitar um contato frontal com aquele ser humano (semelhante e próximo) mortalmente ferido.

15 Jesus usa de certa ironia ao eleger como o benfeitor da história um samaritano. Considerado pelos judeus da época como o mais asqueroso dos hereges, excluído do direito de ser "próximo" do judeu, um pecador tanto em relação à doutrina como à prática da religião (Jo 4.20); mesmo assim, era capaz de compadecer-se e ter misericórdia de um inimigo necessitado, sacrificando-se e pagando alto preço para salvá-lo. Dois denários de prata correspondiam a dois dias de trabalho e eram suficientes para custear cerca de dois meses numa hospedaria. Uma ilustração clara da obra de Cristo por nós (Rm 5.8).

16 Maria e Marta eram irmãs de Lázaro (Jo 11; 12.1-3), grandes amigos de Jesus. Viviam em Betânia, um povoado que ficava a uma distância de quatro quilômetros de Jerusalém. Jesus ensina a Marta, e a nós, que freqüentemente aplicamos nossas forças e preocupações na performance (realizar, conquistar). Quando o correto, mais sábio e proveitoso é empenhar nossos sentidos a ouvir e adorar o Senhor, assim como fez Maria. Esse princípio oferece o equilíbrio ideal em relação ao estímulo para o serviço que aprendemos com a parábola do Bom Samaritano. Em vez da preocupação e ansiedade pelo servir um banquete digno do Senhor, um prato seria suficiente; e Maria preferiu o banquete espiritual aos pés de Cristo: a melhor causa (At 6.2,4; Mc 10.45; Jo 4.32-34).


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