Notas – Cap. 1 - 5

Capítulo 1

1
A palavra grega anothen, traduzida por "origem", quer dizer: "de cima", "dos altos céus" (Jo 3.31; Tg 1.17), e se refere também a uma análise criteriosa de "alto a baixo", "do começo ao fim". Teófilo, que em latim e grego significa "querido por Deus" ou "aquele que ama a Deus", foi um militar de alta patente do exército romano que, convertido ao Senhor, patrocinou a pesquisa e a publicação deste relatório fiel sobre a vida e a obra de Jesus, livro que veio a tornar-se parte do cânon bíblico (livros inspirados por Deus) do NT e cujo propósito, assim como João (Jo 20.31), é proporcionar a seus leitores plena certeza quanto aos tremendos fatos relacionados à história de Cristo e à nossa salvação eterna.

2 Herodes, o Grande, reinou de 37 a 4 a.C. por toda a Samaria, Galiléia e grande parte da Peréia e da Celo-Síria (Mt 2.1). O tempo referido pelo texto situa-se entre os anos 7 e 6 a.C. Zacarias e Isabel eram ambos de ascendência sacerdotal, da linhagem de Arão, grupo sacerdotal de Abias. Tradicionalmente, desde os tempos de Davi, os sacerdotes foram organizados em 24 grandes divisões, sendo Abias um dos líderes das famílias dos sacerdotes (Ne 12.12; 1Cr 24.10).

3 Zacarias e Isabel não eram impecáveis, mas amavam ao Senhor de coração, e Deus observava essa "adoração interior" em seus servos, a qual se refletia "exteriormente" no cumprimento irrepreensível dos preceitos religiosos (Fp 3.6) e, especialmente, no relacionamento com as pessoas. Um grande contraste em relação às atitudes apenas "cosméticas" dos fariseus (Mt 5.20; 23.2-5).

4 Uma das grandes responsabilidades do sacerdote era manter o incenso queimando em louvor a Deus, no altar diante do Santo dos Santos. Ele colocava ali incenso novo todas as manhãs, antes do sacrifício matinal, e, outra vez, logo após o sacrifício vespertino (Êx 30.6-8). Era raro que um sacerdote tivesse o privilégio de ministrar ao Senhor no Santo dos Santos, pois eles eram muitos e a determinação dessa tarefa se fazia por lançamento de sortes. Além disso, essa era uma experiência única na vida de muitos sacerdotes (2Sm 6.7) que, por não estarem vivendo de acordo com a vontade de Deus, eram fulminados pela ira do Senhor em pleno ato de ministração (Ne 11.1; Pv 16.33; Jo 1.7; At 1.26).

5 A expressão usada pelo anjo, traduzida por "não tenhas medo", no hebraico tem o sentido de "não perder a confiança em Deus", sendo uma palavra de encorajamento muito usada em toda a Bíblia (no verso 30 e em 2.10; 5.10; 8.50; 12.7,32; Gn 15.1; 21.17; 26.24; Dt 1.21; Js 8.1). O nome João deriva do hebraico antigo e significa: "O Senhor é bom e misericordioso".

6 A grandeza de João seria reconhecida pelas qualidades de profeta precursor do Senhor, nazireu (Nm 6.3) e sacerdote. O permanente estado de plenitude e dependência do Espírito Santo capacitaria João a proclamar a Palavra de tal maneira que muitos seriam convertidos de seus caminhos mundanos e formariam um povo de coração preparado para a vinda de Jesus Cristo e do Reino de Deus (At 19.4). João cumpriu as profecias de Ml 3.1; 4.5,6 e as registradas em Is 40.3,4 (veja Lc 7.24-35). João também se submeteu ao voto nazireu de abstinência de bebidas alcoólicas (Nm 6.1-4). Em seu caso, desde o ventre de sua mãe, como Sansão (Jz 13.4-7) e Samuel (1Sm 1.11).

7 Não há qualquer possibilidade de Elias ter voltado na pessoa de João (Jo 1.21). A Bíblia não oferece nenhuma base textual para as teorias da reencarnação ou mediunidade. Entretanto, João foi Elias na semelhança do seu amor e fidelidade ao Senhor (Mt 11.14). Na sua mensagem poderosa e destemida, convocando os seres humanos ao mais sincero e absoluto arrependimento de seu deliberado e contínuo afastamento de Deus.

8 À semelhança de Abraão (Gn 15.8), de Gideão (Jz 6.17) e de Ezequias (2Rs 20.8), Zacarias pediu um sinal (1Co 1.22), talvez não da melhor maneira, mas o anjo o atendeu e nos deixou uma lição sobre jamais duvidar da Palavra do Senhor. Um estudo comparativo de Abraão e Sara em relação a Zacarias e Isabel, focalizando especialmente Isaque e João, será de grande valor (Gn 15 a 18).

9 O nome Gabriel em hebraico antigo significa: "o poderoso homem de Deus". Apenas dois anjos têm seus nomes identificados nas Sagradas Escrituras: Gabriel (Dn 8.16; 9.21) e Miguel (Dn 10.13,21; Jd 9; Ap 12.7).

10 A multidão estava aguardando com apreensão e ansiedade que o sacerdote (Zacarias) saísse do Santo dos Santos para proferir a tradicional bênção arônica (Nm 6.24-26). Entretanto, ele saiu mudo. Todo sacerdote tinha a obrigação de trabalhar durante uma semana nas dependências do templo, uma vez a cada seis meses (vs. 23, 39).

11 Especialmente no AT, a ausência de filhos ou o empobrecimento eram considerados sinais do desfavor divino, ou de sérios pecados ocultos, o que sujeitaria as pessoas ao castigo de Deus. No caso da infertilidade, toda a responsabilidade pela falta de filhos e, portanto, pelo descontentamento divino, recaía sobre a mulher, a qual era vítima das mais variadas e deprimentes formas de julgamento e rejeição por parte da comunidade e, muitas vezes, do próprio marido. Jesus e seus discípulos jamais aprovaram esse tipo de teologia simplista e distante dos propósitos gerais de Deus para a humanidade (Gn 16.2; 25.21; 30.23; 1Sm 1.1-18; Lv 20.20,21; Sl 128.3; Jr 22.30).

12 Lucas trata o assunto da concepção virginal de Jesus de forma clara e objetiva (observe os versos 27, 34 e 35 e Mt 1.18-25). A fecundação foi obra do Espírito Santo que, ao cobrir Maria, na forma de uma sombra, gerou em seu ventre o embrião que seria Jesus, a eterna segunda pessoa da Trindade. Jesus jamais deixou de ser Deus, mas Deus assumiu completamente corpo e alma humanas, possibilitando que Jesus fosse plenamente homem e plenamente Deus a um só tempo (Jo 1.14). Maria havia sido desposada, o que significa no judaísmo da época, uma espécie de noivado definitivo. Um compromisso de casamento sem possibilidade de arrependimento. Qualquer infidelidade por parte da mulher a partir desse pacto matrimonial, era punida com a pena de morte por apedrejamento para a virgem que cometera adultério e para o homem que a tivesse seduzido (Dt 22.23,24). Maria e José eram descendentes diretos de Davi (vs.32,69 e 2.4).

13 Em algumas versões traduzidas a partir da Vulgata latina, conservou-se a palavra "Ave" (de onde teve origem a frase: "Ave Maria") uma expressão comum de saudação em latim, e que significa: "Salve!" ou "Seja Feliz!", mais propriamente traduzida aqui por "Alegra-te!". Outra expressão que aparece em algumas versões da Bíblia é: "cheia de graça", numa referência ao favor de Deus para com sua serva. A tradução e o sentido mais literal dessa frase nos originais gregos são: "tu que foste e permaneces repleta do favor divino".

14 O nome próprio "Jesus" deriva do hebraico antigo ( - Yeshua) e significa: "Josué", que quer dizer: "Yahweh Salva" ou "Jeová é o Salvador" (Mt 1.21).

15 "Grande" era um título de destaque dado a personalidades notáveis, especialmente aos imperadores da época. O anjo comunica que o Reino de Cristo é imenso e jamais terá fim. A expressão hebraica traduzida por "Altíssimo" é igualmente um título honroso, muitas vezes usado no AT e no NT em referência à pessoa de Deus (nos versos 35,76; 6.35; 8.28; Gn 14.19; 2Sm 22.14; Sl 7.10), e tem dois sentidos. Refere-se ao divino Filho de Deus e ao Messias (o Cristo, em grego). O messianato de Jesus é claramente abordado nos versos 32b e 33. Quanto ao trono de Davi, que significa o comando do mundo, foi profetizado no AT que seria entregue por Deus ao Messias, da descendência de Davi (2Sm 7.13,16; Sl 2.6,7; 89.26,27; Is 9.6,7).

16 A missão de Cristo como mediador um dia se encerrará (1Co 14.24-28) e dará lugar ao Reino unificado do Pai e do Filho que durará eternamente (Sl 45.6; Rm 1.3,4; Fp 2.9-11; Hb 1.8; Ap 11.15).

17 Maria não se assusta tanto com o anjo quanto com as palavras dele. Entretanto, mesmo sendo uma jovem simples de pequena aldeia do interior da Galiléia, não duvida da revelação divina que recebe, como ocorreu com o experiente teólogo e dedicado sacerdote Zacarias. Maria apenas – compreensivelmente – desejava saber "como" tal evento se daria. Muito embora as revelações comunicadas a Maria tenham sido ainda mais extraordinárias do que as anunciadas a Zacarias, a serva do Senhor não precisou de provas ou sinais para aceitar, com alegria submissa, a missão que o Senhor lhe confiara.

18 Alguns séculos depois da ressurreição do Senhor, surgiram certos escritos seculares questionando o período da primeira juventude de Jesus, sobre o qual a Bíblia nada fala. Foram sugeridas várias hipóteses e uma delas levanta a possibilidade de Jesus ter passado por uma fase em que teria cometido alguns pecados para se assemelhar ainda mais aos seres humanos. As Sagradas Escrituras, entretanto, são claras em afirmar que Jesus nasceu Santo (a expressão hebraica original significa: separado para habitação de Deus) e jamais cometeu um só pecado (2Co 5.21; Hb 4.15; 7.26; 1Pe 2.22; 1Jo 3.5). Não foi o nascimento virginal de Jesus que o fez "Santo", e muito menos, "Filho de Deus". Esse foi o meio pelo qual o Filho, preexistente (que sempre existiu), revelou Sua Deidade (Jo 1.1,14; Fp 2.6).

19 Lucas dá grande ênfase à ação do Espírito Santo, não apenas no evangelho, mas, especialmente no livro de Atos. Algumas versões trazem a expressão "possuída" para descrever o quanto Isabel ficou cheia (em plenitude) do Espírito. Foi pelo Espírito que Isabel reconheceu Maria como mãe do Redentor (v.43) e é só pelo Espírito Santo que o pecador pode conhecer a Cristo como seu único, suficiente e eterno Salvador e Senhor (Jo 16.8,9).

20 Maria (e não Isabel como sugerem algumas versões), na plenitude do Espírito Santo, a exemplo de Ana (1Sm 2.1-10), louva ao Senhor por sua graça e misericórdia para com todos, especialmente para com os humildes e desprotegidos. A tradição da Igreja transformou esse cântico (salmo) num hino conhecido como Magnificat, pois na tradução desse texto em latim, na Vulgata, a primeira palavra é "Magnificat", que significa: "Engrandece".

21 Maria, usando uma forma de expressão profética, refere-se às maravilhas que a vinda do Cristo (o Messias) produziria (Tg 5.1-6). Deus supre os "famintos" de bênçãos espirituais e bens materiais (de pão e justiça – Ef 1.3 com 1Sm 2.5), especialmente quando eles aprendem o que é "temer ao Senhor" (viver em harmonia e respeito à vontade revelada de Deus na sua Palavra).

22 A expressão "seu servo", em grego transliterado é paidos, e significa: "servo filho". "Filhos de Deus" é uma expressão que, em grego, se refere a outras duas palavras: tekna ou huioi. Além do servo Israel, também Davi e Cristo são como "servos" de Deus (v.69; conforme At 3.13,26; 4.25,27,30). Israel, como o Servo de Yahweh (Jeová), tendo cumprido sua missão, cede seu lugar ao Messias (Jesus Cristo) nas maravilhosas profecias sobre o "Meu Servo" (Is 41.8,9; 42.1; 44.1,2,21; 45.4). O cântico termina garantindo que Deus será fiel às promessas que fez a Seu povo (Gn 22.16-18).

23 Maria ficou com Isabel, sua parenta e amiga querida, até o nascimento de João Batista, quando retornou para casa, em Nazaré.

24 Na antigüidade judaica era usado um pedacinho de madeira coberto com cera e um buril (um pequeno instrumento de metal usado para gravar textos e imagens em madeira), como uma espécie de livro de anotações. A importância dos nomes atribuídos às pessoas é algo notável em toda a Bíblia. No início da Nova Dispensação, temos Zacarias – "Deus se recorda de Sua aliança" (v.54); Isabel – "Deus é fiel"; João – "Deus é bom e misericordioso" (Mt 3.1); Maria – "aquela que guarda em seu coração", e o próprio Jesus – "Deus é o Salvador" (v.31; Mt 1.21).

25 A exemplo de Maria, com seu salmo, Zacarias também expressa sua alegria espiritual e louvor (agora com a voz livre do sinal punitivo do anjo, devido ao cumprimento da promessa), por meio de um hino profético. Esse cântico ficou conhecido pela Igreja como Benedictus, que em latim significa "Bendito" ou "Louvado seja", pois se trata da palavra que inicia este hino na Vulgata latina.

26 A salvação de Deus para Israel não se limitará à redenção nacional (v.71), mas, principalmente, à salvação espiritual (vs.75,77). A expressão hebraica, aqui interpretada por "poderosa" se traduz literalmente por "chifre de boi", numa alusão à força e ao poder (conforme Dt 33.17; Sl 18.1-3; 22.21; 92.10,11; 132.17,18; Mq 4.13). Jesus – o Messias da Casa de Davi – tem poder para salvar e libertar seu povo de todo tipo de opressão e escravidão.

27 João foi chamado profeta do Altíssimo, enquanto Jesus foi reconhecido como Filho do Altíssimo (v.32). O principal ministério de João foi testificar de Cristo (Jo 1.7,29,32-36). O maior ministério do cristão é também ser testemunha de Jesus Cristo (At 1.8). João recebeu a missão de preparar os caminhos do Senhor para sua primeira vinda, enquanto nós devemos apressar o glorioso retorno de Cristo por meio do nosso testemunho e da evangelização de todos os povos (2Pe 3.11,12).

28 Assim como o sol nascente desvanece as trevas, Cristo aniquilou o poder e a culpa do pecado. Veja figuras de linguagem semelhantes em: Nm 24.17; Is 9.2; 60.1. Ele conquistou o império que estava nas mãos de Satanás e destruiu o poder da morte (Rm 5.12-21). O sacerdote Zacarias, não apenas exaltou seu filho, o profeta João, mas louvou o Messias Jesus que chegaria em breve (vs.78,79).

29 Os que vivem nas trevas são os que estão perdidos, a caminho da morte (separação de Deus) eterna (Is 9.1,2; Mt 4.16). A humanidade busca desesperadamente por paz, entretanto o que se vê é o aumento constante da violência e da brutalidade entre pessoas e nações. O vocábulo "paz" no original grego (transliterado: irene), significa: "estado de descanso, tranqüilidade e segurança, devido a um harmonioso relacionamento entre Deus e a pessoa humana". Jesus Cristo é o Príncipe da Paz e todos os seus discípulos já podem desfrutar dessa Paz que será completa e mundial, quando o Senhor estabelecer seu Reino de forma plena e definitiva na terra renovada (Ap 21.1).

30 Zacarias e Isabel, já idosos quando João nasceu; morreram quando ele era ainda muito jovem. Segundo historiadores e arqueólogos, João teria sido levado para o deserto da Judéia, onde viveu cerca de trinta anos e muito aprendeu com os essênios da região de Qunram. A semelhança de terminologia da sua pregação com os chamados Rolos do Mar Morto é notável. João Batista começou seu ministério público com cerca de trinta anos, idade em que os profetas tinham, em geral, sua maioridade e maturidade espiritual reconhecidas pelos conselhos de rabinos.

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Capítulo 2

1
Lucas procura sempre relacionar sua narrativa aos grandes fatos históricos de seu tempo. César Augusto (30 a.C. a 14 d.C) foi o primeiro e o maior dos imperadores romanos. Estabeleceu a chamada "Pax Romana", trocou o sistema republicano por uma forma imperial de governo, conquistou todo o mundo civilizado do Mediterrâneo e estabeleceu a idade áurea das artes, arquitetura e literatura romanas. No ano 27 a.C. o senado romano lhe concedeu o título de "augusto", que em latim significa: "exaltado" ou "digno de toda a reverência". Embora os judeus estivessem isentos do serviço militar romano, e por isso não eram obrigados a atender às convocações militares, não estavam livres de pagar os impostos, e esse recenseamento ou cadastramento visava exatamente alistar todos os cidadãos e moradores sob o domínio romano, especialmente para recolhimento de impostos. Deus usou o decreto de um imperador pagão para cumprir a profecia de Mq 5.2.

2 Quirino foi um oficial romano que coincidentemente trabalhou neste censo e em um segundo alistamento geral que ocorreu de 6 a 9 d.C., registrado por Lucas em At 5.37, no qual Judas se levantou contra o governo romano da época, alegando que Deus era o único e legítimo Rei de Israel, sendo, portanto, ilícito (um pecado) pagar impostos a qualquer outra autoridade.

3 Belém é a mesma cidade onde nasceu o rei Davi cerca de 1000 anos antes destes eventos (1Sm 17.12; 20.6) e se localizava a uma distância aproximada de 10 km ao sul de Jerusalém. Naquela época, uma viagem de pelo menos três dias até Nazaré. "Judéia", era a maneira greco-romana de chamar a parte sul da Palestina, no passado abrangida pelo reino de Judá.

4 Na Síria, província romana na qual se localizava a Palestina, as mulheres acima de 12 anos deviam pagar um imposto individual ao governo, e para isso tinham de ser cadastradas (recenseadas). Maria também pertencia à casa de Davi.

5
No ocidente e por motivos não históricos nos acostumamos a celebrar o natal (nascimento de Jesus Cristo) em dezembro. Entretanto, segundo muitos historiadores e arqueólogos de prestígio, a data mais provável deve ter sido na primavera palestina (entre maio e junho). Era costume entre as mães judias envolver os filhos recém-nascidos com tiras de tecido para que ficassem bem agasalhados e protegidos. A cidade estava lotada com pessoas de todas as partes vindas para ser arroladas no censo. Maria sentia as dores de parto e a única solução foi se acomodarem em um estábulo. Ao nascer, Jesus foi posto em uma manjedoura, uma espécie de cocho onde se colocava o alimento dos animais.

6 Os líderes religiosos e o povo judeu estavam divididos em suas expectativas quanto à obra do Messias prometido. Uns esperavam que ele fosse um grande líder militar e os livrasse do domínio romano. Outros desejavam cura para as enfermidades e os muitos sofrimentos físicos. E, outros ainda, ambicionavam um Messias que os livrasse da fome e da pobreza. Contudo, a missão prioritária do Cristo, anunciada pelos anjos, é que Ele viria resgatar a humanidade, pagando o preço pelo pecado: a morte (Mt 1.21; Jo 4.42). A pessoa e a obra de Cristo neste mundo significam: maior glorificação de Deus Pai nos céus (17.4,5) e paz divina eterna para todos os habitantes da terra que receberem seu Espírito com amor e sinceridade (v.14; Rm 5.1,2). A expressão hebraica: "Senhor", até a vinda de Cristo, era usada exclusivamente para se referir a Deus (At 2.36; Fp 2.11).

7 Um grande coral de anjos entoou um cântico de louvor a Deus. As primeiras palavras deste pequeno hino, registrado em latim na Vulgata, são: Gloria in exelsis Deo! Os anjos exaltam a majestade de Deus em todo o universo, nos céus, onde Deus habita (Mt 6.9). O mundo da época vivia sob a Pax romana, uma paz exterior e temporária, imposta por um imperador humano. Os anjos anunciam a "Paz de Deus", eterna e absoluta, garantida a todos quantos se agradam (recebem com gratidão, sinceridade e lealdade) a graça de Deus (Lucas usa a palavra "agrado" em vários momentos 3.22; 10.21; 12.32). A "Paz de Deus" só pode ser recebida por quem crer que Ele é o Único doador e Salvador. Em resumo: é um ato de fé (Rm 5.1). O Messias davídico era chamado de "Príncipe da Paz" (Is 9.6). De outro lado, embora Cristo tenha prometido essa Paz aos seus discípulos (Jo 14.27), Ele deixou bem claro que haveria lutas, aflições e tensões (Mt 10.34-36; Lc 12.49; Jo 16.33), pois manter a paz com Deus significa viver em oposição diária a Satanás e seus ardis (Tg 4.4).

8 Jesus, o Filho de Deus, relacionou-se de perto com a Lei e a Velha Aliança. Nasceu, cresceu e foi educado sob a Lei para resgatar todos os que estavam sob a Lei e suas conseqüências. Obedeceu a Lei e foi além, para nos ensinar a viver sob o espírito da lei; ou seja, livres da formalidade da letra, mas conduzidos pelo Espírito de Deus, nosso Advogado e Orientador quanto ao que devemos fazer para agradar ao Pai Celestial (Jo 14.25-27; Gl 4.4-5). Lucas usa muitas vezes a expressão "louvando ao Senhor" (1.64; 2.13,28; 5.25,26; 7.16; 13.13; 17.15,18; 18.43; 19.37; 23.47; 24.53).

9 Depois de dar à luz a um filho, a mãe judia, precisava aguardar 40 dias (resguardo), para dirigir-se ao templo e oferecer os sacrifícios chamados de "purificação". Se fosse pobre e não pudesse comprar um cordeiro e uma rolinha (espécie de pombo pequeno), como ocorreu com José e Maria, eram aceitáveis dois pombinhos (Lv 12.2-8; 5.11).

10 Belém distava de Jerusalém cerca de 10 km. Todos os primogênitos dos seres humanos e dos animais deviam, pela Lei, serem consagrados (dedicados) ao Senhor (Êx 13.12-13). Os animais eram sacrificados, pois somente o sangue e a morte dos inocentes podia pagar o preço dos pecados humanos. Cristo tomou sobre si esta penalidade (Is 53.6; 2Co 5.21) e se deu em sacrifício único, suficiente e perpétuo. Os primogênitos humanos eram simbolicamente oferecidos aos cuidados do Senhor (Rm 8.29), e seus pais se obrigavam a educá-los para adorar e servir a Deus. Os filhos deviam seguir a fé dos pais durante toda a vida, mas eram os levitas quem, de fato, dedicavam suas vidas inteiras ao serviço religioso diário, como ministros, representando a adoração de todos os primogênitos masculinos de Israel (Nm 3.11-13; 8.17,18).

11 A consolação que os judeus piedosos (fiéis e adoradores sinceros de Deus) aguardavam era a vinda do Messias (Cristo, em grego) e a implantação de um Reino de justiça, paz e felicidade (vs. 26,38; 23.51; 24.21; Is 40.1,2; Mt 5.4). O Espírito Santo, antes do evento de Pentecostes, vinha "sobre" as pessoas e as agraciava com sua presença por algum tempo. Após a ascensão de Cristo, o Espírito vem "habitar", ou, como no sentido original do AT, "tabernacular" permanentemente na vida do crente (Jo 14.16-18). Lucas dá grande atenção em seus textos à pessoa e ao tríplice ministério do Espírito Santo: Primeiro como condutor da graça preveniente e sensibilizadora que leva o ser humano a buscar a Deus (Jo 16.8), em seguida, revelando a Cristo e iniciando a obra salvadora do Senhor (Jo 3.5; Rm 8.9), e santificando a vida do crente e o preparando para herdar a vida eterna com Cristo (Rm 8.14).

12 Todo aquele que tem uma fé viva e verdadeira na pessoa e na obra de Cristo pode, com toda a certeza e tranqüilidade, morrer em plena paz (1Jo 1.1 em relação a Gn 15.15). Simeão declama um salmo que se tornaria um hino da Igreja conhecido como: Nunc dimittis, que são as primeiras palavras deste cântico em latim, como aparece na Vulgata, e significam: "Agora despede". Lucas, não sendo judeu, teve o cuidado de ressaltar a verdade de que a Salvação é uma graça disponível também aos gentios e não apenas aos judeus (v.32; Mt 24.14; Mc 13.10; Ap 7.9).

13 Cristo veio para reabilitar o caído, consolar os que sofrem e restaurar os que se consideram perdidos. Aos que não se acham necessitados, Cristo veio para, literalmente, "derrubar a casa" (em grego, ptõsis), pois Jesus é pedra de tropeço para os incrédulos (20.17-18; 1Co 1.23; 1Pe 2.6-8). Jesus causa divisão entre o que prefere viver nas trevas e aqueles que atendem ao apelo do seu amor (Jo 3.19), e entre o criminoso arrependido e o blasfemo (Lc 23.39-43). Lucas, pela primeira vez, fala sobre os sofrimentos e o martírio de Cristo, salientando que sua mãe sofreria tanto quanto Ele, como se uma espada varasse seu coração. No entanto não se tem notícia de que Maria tivesse ficado amargurada, ressentida com Deus ou amaldiçoasse seu destino.

14 A Bíblia apresenta outras profetizas: Miriã (Êx 15.20), Débora (Jz 4.4), Hulda (2 Rs 22.14) e as filhas de Filipe (At 21.9). Curiosamente, essa Ana do NT louvou a Deus pelo menino Jesus, assim como, a Ana do AT exaltou ao Senhor pelo menino Samuel. Ambas foram divinamente inspiradas para revelar a Palavra de Deus. O nome "Ana" significa em hebraico antigo: "misericordiosa" (1Sm 2.1-10).

15 Jerusalém é a cidade santa do povo escolhido de Deus (Is 40.2; 52.9). Neste texto representa a nação de Israel como um todo.

16
Lucas não menciona a vinda dos magos (astrônomos), o perigo da parte de Herodes, nem ainda a fuga para o Egito e a viagem de retorno de lá (Mt 2.1-23).

17 José e Maria tinham o zelo de cumprir tudo quanto a Lei requeria, e assim educavam o menino Jesus. Aos doze anos, a tradição judaica considerava o jovem menino como "filho da lei", e seu dever era aprender os preceitos mais amplos da Lei, para no ano seguinte começar a cumprir as exigências cerimoniais relacionadas às festas, jejuns, orações e estudos teológicos. Jesus estava certo de que seus pais sabiam da necessidade que ele tinha – no ano em que completava doze anos – de dedicar-se a esse aprendizado e aprofundamento na cultura judaica junto aos rabinos e mestres da Lei do seu tempo.

18 Na época de Jesus as aulas eram gravadas na memória e no coração dos alunos, não havia as facilidades modernas dos muitos livros, cadernos e computadores. As respostas orais dos alunos às seguidas perguntas dos mestres demonstravam o quanto do ensino havia sido retido e compreendido. Jesus assombrou até os doutores de seu tempo com seu saber e carisma pessoal.

19 Jesus tentou gentilmente lembrar seus pais terrenos sobre seu compromisso de obediência ainda maior a Seu Pai celeste, e por isso contrapôs a expressão: "teu pai", usada por Maria, com a frase: "meu Pai". Ao doze anos Jesus já tinha grande compreensão sobre quem Ele era e qual sua missão na terra. Sua mãe, entretanto, procurou compreender o que havia se passado ponderando tudo silenciosamente em seu coração, e assim agiria durante toda a vida de seu filho na terra. Lucas faz questão de frisar que Jesus foi obediente aos seus pais e os seguiu para casa. Na época em que Lucas estava escrevendo seu Evangelho (entre 60 e 70 d.C.), muitas lendas sobre a adolescência e a primeira juventude de Jesus circulavam por todo o império romano. Uma delas dizia que Jesus passou por uma fase de rebeldia contra seus pais, bem como transformava pequenas peças de barro em pássaros apenas para demonstrar seu poder. O problema, como sempre, é que muitos acreditaram mais na ficção do que na realidade.

20
Lucas afirma a perfeita e completa humanidade pela qual Deus passou ao encarnar-se em Jesus de Nazaré, seu Filho. Como qualquer pessoa, Cristo passou pelas diversas fases do desenvolvimento humano, porém sempre de forma brilhante, perfeito e sem pecado. José, o pai terreno de Jesus, morreu quando Ele era ainda muito jovem, deixando para Ele toda a responsabilidade de cuidar de Maria, sua mãe, e dos demais irmãos. E Jesus ajudou a sustentar sua família por muito tempo, trabalhando como carpinteiro e pedreiro (Mc 6.3).


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Capítulo 3

1
Tibério passou a ter autoridade sobre as províncias romanas por volta de 11 d.C, e Pilatos exerceu a suprema autoridade de Roma na Judéia, entre os anos de 26 e 36 d.C, enquanto Herodes Antipas (filho de Herodes, o Grande) a exerceu na Galiléia e Peréia, de 4 a.C. até 39 d.C. O "décimo quinto ano", citado por Lucas, refere-se ao ano 25 ou 26 d.C.

2 Embora Roma tivesse substituído o sumo sacerdote Anás, sucedido por seu filho Eleazar no ano 15 d.C., os judeus continuavam a reconhecer sua autoridade (Jo 18.13; At 4.6), e por isso Lucas incluiu o nome dele junto com Caifás, a quem os romanos tinham nomeado. Depois de 400 anos sem um profeta oficial, o Senhor convoca (chama) João para ser Sua voz e anunciar a vinda do Messias. João foi o último dos profetas da Antiga Aliança, por isso seu estilo característico, um tanto diferente dos profetas do NT. O chamado de Deus veio a João da mesma maneira como vinha aos profetas do AT (Jr 1.2; Ez 1.3; Os 1.1; Jl 1.1). A palavra "deserto" nos originais, nem sempre se refere a uma região seca e arenosa, mas principalmente a um lugar desolado e desabitado.

3 João foi chamado por Deus para pregar arrependimento ao povo. Somente um coração contrito e quebrantado é caminho pavimentado para a vinda de Jesus e a habitação do Espírito Santo. O batismo de João era um ato simbólico, no qual as pessoas demonstravam publicamente sua compreensão e tristeza pelos erros e pecados cometidos, e a sincera disposição de buscar uma vida em plena harmonia com a vontade de Deus. A morte do homem interior é a única maneira de revelar o caráter de Deus: a Imago Dei (Imagem de Deus). Quanto mais parecidos com Deus, mais verdadeiramente humanos nos tornamos. A remissão total dos pecados viria na Salvação de Deus: Jesus Cristo (v.6), que seria oferecida a todas as pessoas da terra e, por fim, virá a eterna condenação dos rebeldes (v.7). Somente Jesus Cristo tem o poder de perdoar todos os nossos pecados e cancelar (pagando por nós), a pena de condenação já decretada contra nós (Rm 8.1).

4 Deus mandou que João quebrasse a arrogância daqueles que imaginavam a salvação apenas como uma promessa hereditária e mais nada. João lhes fala da única maneira capaz de os fazer acordar para a realidade. Advertindo-os severamente para o fato de que estavam sendo enganados pela "mãe das víboras": o Diabo. Eram, portanto, uma geração de serpentes venenosas (Jo 8.44). Os verdadeiros filhos de Abraão são aqueles que amam a Deus e aos seus semelhantes (Rm 8.14). A ira de Deus manifestou-se no ano 70 d.C. quando toda Jerusalém foi destruída (21.20-23); e o será de maneira global, por ocasião do Juízo final (Jo 3.36). Os arrogantes, os ímpios e todos aqueles que vivem longe de um arrependimento genuíno, e de uma vida cristã sincera, estão diariamente sujeitos ao Juízo de Deus (v.9; Mt 7.19; 13.40-42).

5 Os frutos que surgem em função de um verdadeiro arrependimento diante de Deus são: O reconhecimento da responsabilidade pessoal e social. A disposição para evitar o mal. A prática espontânea de boas obras. A partilha amorosa e voluntária dos bens pessoais com aqueles que mais necessitam. Um caráter honesto e justo em todos os relacionamentos e assuntos. Uma atitude paciente em todas as situações. A prática da verdade. Um espírito alegre e otimista mesmo em meio às grandes dificuldades da vida, compreendendo que a esperança não vem das pessoas, nem das coisas, mas de Deus, nosso Pai (1Tm 6.6). João usa um trocadilho em hebraico, facilmente compreendido naquela época por seus conterrâneos. A palavra aramaica transliterada: "filhos" banim, muito se assemelha à palavra "pedras" abanim, significando que Deus pode dar aos que carecem de dignidade humana, a mais alta posição com Seu Filho.

6
Os publicanos eram agentes judeus contratados pelo império romano para receberem os impostos cobrados pelo governo. Eram detestados pelo povo judeu por várias razões, entre as quais por colaborarem com o conquistador romano pagão e, por muitas vezes fraudarem e oprimirem seus próprios irmãos (Lc 19.2,8). Entretanto, os publicanos que se arrependiam, passavam a ter um comportamento honesto e justo.

7 Os publicanos contavam com a cooperação de uma escolta romana para realizar o trabalho de coletar impostos. Era comum os publicanos se juntarem aos soldados e armarem situações para defraudarem os judeus que deviam impostos ao governo. A orientação clara de João é que, uma vez arrependido e comprometido com o Reino, o comportamento deve ser digno e ético. Uma autoridade que teme a Deus jamais deveria usar seu cargo ou posição para intimidar com o propósito de extorquir, ou acusar (denunciar) com objetivos escusos.

8
João tinha o ministério do arauto. Na cultura oriental da época, um proclamador adiantava-se à caravana do monarca com o objetivo de anunciar a chegada de tão importante personalidade, a fim de que o povo se preparasse adequadamente para recebê-lo. Normalmente as pessoas se vestiam com roupas de gala, arrumavam suas casas e decoravam a cidade de forma festiva. Em termos espirituais, o arrependimento era a grande preparação para a vinda do Messias (o Cristo) e a inauguração de um novo tempo, no qual Jesus concederia o Seu Espírito aos que nele cressem (Jo 3.3,5), o que veio a ocorrer a partir do Pentecostes (At 1.5; 2.4,38). A expressão "fogo", nos originais, está ligada ao Juízo (v.17; 12.49-53), ao Pentecostes (At 2.3) e às provações (1Co 3.13).

9 A palha representa os infiéis e impenitentes (Rt 1.22), e o trigo, os justos e fiéis. Deus, em relação às pessoas, sempre faz separação entre os que humildemente desejam Sua Graça e os arrogantes e rebeldes, que preferem uma vida de pecado, e, conseqüentemente, seu salário. O vocábulo grego transliterado: "asbestõ", significa uma qualidade do fogo que, devido à sua fúria e poder de combustão, não pode ser apagado. Muitos judeus imaginavam que na vinda do Messias somente os pagãos seriam julgados e condenados ao fogo eterno. Entretanto, João deixa bem claro que o Juízo vem para todos quantos não se arrependem, inclusive os judeus de nascimento.

10 Esse foi Herodes Antipas, filho de Herodes, o Grande, que mandou matar todas as crianças judias de Belém. Conforme os escritos de Josefo, historiador judeu, João foi encarcerado em Maquero, a leste do mar Morto (Jo 3.22-24). Lucas antecipa a narração deste fato para encerrar a seção sobre o ministério de João e iniciar sua descrição do ministério de Jesus (Mt 4.12; Mc 1.14), mais tarde faz breve menção à morte de João (9.7-9).

11 Lucas chama atenção para o fato de que Jesus estava em oração por ocasião do seu batismo, assim como o faz em muitos momentos (5.16; 6.12; 9.18-29; 11.1; 22.32,41; 23.34,46), oferecendo aos seus discípulos um grande exemplo e demonstrando sua total humanidade e dependência do Pai (Hb 4.15; 5.7). O Espírito assumiu uma forma corpórea (uma espécie de pombo), para que os presentes pudessem reconhecer a Jesus como o Messias (Is 11.2,3; 42.1; Sl 2.7; Hb 1.5) e para sinalizar o início de um tempo em que seus discípulos poderiam viver plenos do Espírito do Pai (4.1,14). Este evento demonstra que a Trindade está presente no batismo e na vida do cristão sincero (Mt 28.19).

12 Lucas segue a linhagem de Maria, mãe natural de Jesus, e seu parentesco consangüíneo; enquanto Mateus destaca a ascendência de José (o pai jurídico de Jesus). Tanto José, quanto Maria, pertenciam à Casa de Davi. Mateus preocupa-se em demonstrar o parentesco de Jesus com Abraão, enquanto Lucas ressalta a importância de Maria na genealogia de Jesus e sua solidariedade com toda a humanidade em Adão. Não era nada comum descrever uma árvore genealógica pelo lado materno. Todavia, Lucas se propusera a fazer uma narrativa o mais lógica e ordenada possível dos acontecimentos. Como já havia sido muito franco e direto ao explicar a geração virginal de Jesus (1.34,35), fato ainda mais inusitado, não podia omitir a maneira como a paternidade de Jesus ocorrera: de um lado, José, "como se dizia" ou "como se imaginava" (v.23; 4.22), ou seja, o pai juridicamente responsável por Jesus; e o Espírito de Deus que o gerou. Aos trinta anos de idade Jesus inicia seu ministério, assim como era costume entre os levitas (Nm 4.47), quando um servo judeu era considerado maduro para os variados serviços religiosos. Jesus cumpriu toda a Lei, e foi além.


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Capítulo 4

1

Lucas é inspirado por Deus (aqui e no livro de Atos) para dar especial destaque à ação da terceira pessoa da Trindade – o Espírito Santo – no mover do coração do Senhor e de seus discípulos para fazerem a vontade do Pai (1.35; 41.7; 2.25-27; 3.16,22; 4.14,18; 10.21; 11.13; 12.10,12). Durante toda a sua vida na terra, Jesus suportou fortes e complexas tentações, em algumas delas a Bíblia não nos revela os detalhes. Todavia, esse embate mereceu especial destaque, pois esteve em questão todo o futuro dos seres humanos. Os ataques do Diabo foram contra o Messias (o Ungido de Deus, Seu Filho), o cabeça da Nova Humanidade (Cl 2.15). Jesus foi tentado de forma extremamente sutil, ardilosa e não menos poderosa. Contudo, venceu por nós. Em contraste com Adão (em hebraico: homem – Gn 2.20, enquanto Eva, significa: humanidade), que se tornou o cabeça da Velha Humanidade, pois não conseguiu obedecer ao Criador, embora vivendo em condições ideais; e caiu, cometendo o primeiro pecado da humanidade, com conseqüências mortais, o qual acompanhará o gene de cada indivíduo humano, de geração em geração, até o final dos tempos. O Segundo Adão (Jesus – o Novo Homem), venceu o Diabo em total fraqueza da carne. Adão havia inaugurado a humanidade com toda a autoridade e glória do mundo (Gn 1.28-30), enquanto Jesus foi glorificado através do sofrimento, da humilhação e da morte (Rm 1.4; Fp 2.9-11). O primeiro Adão não aceitou cumprir a vontade de Deus e fez prevalecer os seus próprios desejos, rebelando-se contra a única restrição imposta a ele por Deus. O Segundo Adão, o Filho de Deus, aceitou, de livre vontade, cumprir todos os desejos do Pai (Gl 4.4; Fp 2.6-8).

2 Após 40 dias em absoluto jejum, os originais hebraicos e gregos revelam que Jesus não apenas estava com "fome" (como consta em algumas versões), mas sim que ele estava sôfrego de fome (esfomeado). O Diabo nem sempre é horrível e violento, pois pode travestir-se de luz e justiça. Sua estratégia foi induzir Jesus a abdicar de sua condição humana, usar de seus poderes divinos, e deixar o caminho do sofrimento inevitável. O Diabo sempre fará as tentações parecerem irresistivelmente atraentes. Entretanto, Jesus – o Novo Homem - apegou-se à Palavra de Deus e, citando a Torá (Lei), mais precisamente, passagens em Deuteronômio (8.3; 6.13-16), enfatiza que o pão e a fartura material nada valem sem a bênção de Deus. Jesus não diz que não podia fazer o que o Diabo lhe sugeria, mas sim que sua vontade maior era agradar ao Pai.

3
Uma tentação aparentemente inteligente, considerando que Jesus veio para dominar sobre todos os reinos da terra. Depois deste lugar, Jesus foi conduzido ao canto sudeste da colunata do templo, o seu ponto mais alto (ou pináculo do templo), um declive de cerca de 30 metros para o vale do Cedrom. Todavia, o ardil de Satanás estava no fato de tentar fazer com que Jesus evitasse os sofrimentos do caminho da cruz, os quais veio especificamente suportar como única maneira, divinamente legal, de libertar a humanidade do estigma do pecado (Mc 10.45), herança do Velho Homem. Pecado esse que somente poderia ser pago (resgatado), com a morte (sacrifício) de um homem inocente (sem pecados). Uma vez que o Diabo não conseguiu iludir Jesus apelando para as suas necessidades físicas, tenta seduzi-lo com toda a glória e poder que este mundo pode oferecer e que estão (temporariamente) sob seu domínio, mas é novamente rechaçado (1Jo 5.19).

4 Satanás questiona a filiação de Jesus a Deus, cita as Escrituras corretamente (Sl 91.11-12), porém aplica o ensino de forma tendenciosa e errônea, como fizera em Gn 3.1, e tenta fazer com que Jesus teste a fidelidade do seu Pai e chame a atenção do público sobre sua pessoa de forma espetacular. O príncipe do mal é afastado quando Jesus reafirma sua total humanidade ao usar a Palavra para confirmar que não cabe ao homem testar a Deus; e sua total divindade ao chamar a atenção de Satanás para o fato de que ele não deveria estar provocando a Deus. Entretanto, o Diabo continuou tentando ao Senhor (o arrogante é surdo) durante todo o seu ministério (Mc 8.33), até culminar com a prova maior, no Getsêmani (Jo 14.30; Lc 22.53).

5 Jesus foi para Nazaré cerca de um ano depois do início do seu ministério. Os acontecimentos narrados por João, de Jo 1.19 até 4.42, foram sintetizados por Lucas em Lc 4.13-14. Jesus voltou para sua terra natal apenas duas vezes (Mt 13.53-58 e 6.1-6). Em ambos os casos se destaca a falta de fé daqueles que mais conviveram com Ele, mas o conheciam apenas como um jovem e bom judeu do interior, que ajudava seu pai José a manter a família como carpinteiro e construtor (pedreiro). Os livros do AT eram escritos em rolos de couro, guardados em lugar especial e honroso na sinagoga (como ainda ocorre em nossos dias), e oferecidos, por um funcionário, ao pregador do dia ou a um mestre visitante (no caso de Jesus naquele dia). Jesus leu o texto de Is 61.1,2 em hebraico e o pregou em aramaico, sua língua materna e de seus conterrâneos.

6 O texto do AT lido por Jesus descreve o ministério do Messias, na emancipação dos pobres, através da riqueza que há no Evangelho (em grego: Boas Novas, Ef 1.3); dos cativos, através da libertação da Graça abundante (Gl 5.1,13); dos deficientes visuais (em todos os sentidos), através do seu jugo, pois Ele toma para si o nosso fardo (Mt 11.28-30; 1Pe 5.7). Durante todo o Evangelho, Lucas demonstra que Jesus, o Cristo (o Messias) foi Ungido (escolhido, separado), não apenas por um ritual da tradição judaica (Êx 30.22-31), mas pelo próprio Espírito de Deus. Sua missão foi proclamar um novo tempo da graça de Deus, no qual as pessoas de toda a terra alcançariam a salvação (vida eterna) ao receberem a Palavra de Jesus Cristo em seus corações com fé, amor e sinceridade (2Co 6.2). Jesus interrompe sua leitura antes de citar "o dia da vingança", que ocorrerá com sua segunda vinda no futuro iminente. A expressão grega, transliterada por: dektos (que significa: "aceitável", "bem recebido"), refere-se não a um ano civil de doze meses, mas a um período, a chamada Era Messiânica.

7
Embora Jesus tenha nascido em Belém, foi criado e passou toda a adolescência em Nazaré, na Galiléia (1.26; 2.39,51; Mt 2.23).

8 Sidom foi uma das mais antigas e importantes cidades da Fenícia, e localizava-se a cerca de 32 km ao norte de Tiro.

9
Jesus descreve a si como um dos profetas de Deus, que também haviam sido rejeitados pelos seus próprios e amados concidadãos. Lucas faz ainda questão de observar a referência feita por Jesus à graça dispensada por Deus a uma mulher e a um homem, ambos gentios, ou seja, que não eram judeus (1Rs 17.1-15; 2Rs 5.1-14). O que mais enfureceu os nazarenos, membros da sinagoga, foi o fato de Jesus dizer que, quando Israel rejeitou o mensageiro da redenção, especialmente mandado por Deus, este o enviou aos gentios, e que isso aconteceria uma vez mais, caso eles se recusassem a aceitar o ensino e a graça de Jesus (10.13-15; At 13.46 Rm 9 e 11).

10 Lucas nos deixa em suspense quanto aos detalhes dessa saída de Jesus das garras de seus oponentes. Os originais revelam que Jesus "saiu andando e seguiu para onde devia ir". Algumas versões apenas traduzem por "...passando por eles, retirou-se." De qualquer forma, a grande lição deste evento é que o tempo de Jesus ainda não havia chegado, prova de que ele tinha plena consciência e controle do momento exato no qual ofereceria sua vida em prol da humanidade, ninguém seria capaz de tirar a vida do Senhor, ele, espontaneamente, a daria.

11
Para os povos pagãos a expressão "demônio", significava apenas "um ser sobrenatural", que podia ser "bom" ou "mau". Lucas, quis que os gentios o compreendessem corretamente e deixa claro que esse era mesmo um espírito maligno. Esses demônios, ao se incorporarem a uma pessoa, podiam provocar distúrbios mentais (Jo 10.20), atitudes violentas (Lc 8.26-29), doenças e enfermidades físicas diversas (13.11,16) e a própria rebelião contra Deus (Ap 16.14).

12 Ao contrário do que muitos teólogos pregam para defender especialmente a teoria do celibato, Pedro foi casado (1Co 9.5). Os três evangelhos sinóticos discorrem sobre esse milagre, mas apenas Lucas, por ser médico, acrescenta expressões tipicamente técnicas, como: "com muita febre" ou "febre alta".

13 Ao pôr-do-sol encerrava-se o Shabbãth (em hebraico: o sábado judaico), isso se dava por volta das 18h. Antes dessa hora, conforme a tradição dos anciãos, os judeus eram proibidos de viajar mais que um quilômetro de distância, ou sequer carregar um fardo. Somente a partir do entardecer do sábado as multidões podiam levar seus enfermos a Jesus, o que faziam ansiosa e confiantemente em Cafarnaum, sendo por isso abençoadas por Jesus, com curas e outros milagres em profusão. Entretanto, a missão do Senhor deveria continuar e sua graça ser estendida aos limites da terra. Os originais deixam transparecer o coração compassivo de Jesus em sua despedida.

14
Algumas versões, utilizando manuscritos historicamente mais recentes, e os relatos paralelos de Mt 4.23; Mc 1.39, informam que Jesus se dirigiu para a Galiléia. Entretanto, originais mais antigos, trazem "Judéia", no sentido de toda a região da Palestina, que inclui a Galiléia (Jo 2.13 – 4.3), e por isso o Comitê de Tradução da Bíblia King James optou por essa designação mais abrangente e fiel aos melhores originais.


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Capítulo 5

1

Lucas é o único dos evangelistas que se refere ao grande lago da Galiléia, que fica a 220m abaixo do nível do mar e mede 21 km de comprimento por 12 km de largura, chamando-o, de forma tecnicamente correta, de lago. Os demais escritores o chamam de "mar da Galiléia", e João o denomina por duas vezes de "mar de Tiberíades" (Jo 6.1; 21.1).

2
O barco de Pedro foi posicionado de forma estratégica de modo que Jesus pudesse ser visto e ouvido por toda a multidão. Além disso, era costume judaico que um mestre ao ensinar, deveria fazê-lo assentado, bem como seus ouvintes, para que a comunicação se desse da maneira mais confortável possível.

3 A palavra "Mestre", em grego transliterado: epistata, só aparece em Lucas, e significa: "aquele que tem o direito de mandar". Quando todos os indicativos apontavam para um novo insucesso: o melhor horário para a pesca era durante a noite e não em pleno dia; a experiência profissional de Pedro e de seus companheiros contra a inexperiência de Jesus no ramo, pois era um carpinteiro ligado às artes e letras; o fato de terem trabalhado arduamente durante toda aquela noite e terem apenas sujado as redes, Pedro decide obedecer à Palavra de Jesus. Preparou e lançou sua rede com esperança.

4
Curiosamente a expressão grega transliterada: buthizesthai (que significa: afundar), usada por Lucas, traduzida em algumas versões por irem a pique e aqui por começarem a
afundar, tem a ver com a mesma expressão usada em 1Tm 6.9, onde descreve o mergulho para a perdição daqueles que ambicionam exclusivamente as riquezas materiais.

5
Pedro assombrou-se mais com sua falta de fé e indignidade do que com o evento em si. Ele tinha confiança em Jesus, mas não tinha certeza absoluta de que o milagre se daria, ainda mais naquelas proporções. A reação de Pedro revela a atitude normal de todas as pessoas ao chegarem sinceramente à conclusão de que são pecadores e indignos de permanecerem na presença santa de Deus; portanto carentes e dependentes absolutamente da graça do Senhor (Ap 6.16). Desta mesma maneira se sentiram os grandes líderes espirituais da antiguidade. Entre eles: Abraão (Gn 18.27); Jó (42.6) e Isaías (6.5).

6 É digno de nota o fato de Jesus haver escolhido seus discípulos entre homens que estavam dedicados a um trabalho árduo, não entre líderes religiosos preguiçosos e desocupados. Contudo Pedro foi convocado duas vezes para servir a Cristo após duas pescarias milagrosas. Primeiro para o discipulado e algum tempo mais tarde, para o apostolado (Jo 21.1-18), quando – uma vez mais – achava-se indigno para o ministério.

7 Jesus já conhecia esses homens aos quais agora faz uma convocação formal (Jo 1.40-42; 2.1,2). Os originais e outras passagens dão a entender que eles não abandonaram tudo de forma irresponsável e tresloucada; mas sim que renunciaram a seus lucros – especialmente os dessa última pescaria – e entregaram a administração da empresa a Zebedeu, pai de João e Tiago, ou a outros membros da família (Mt 4.18-22).

8 A expressão original grega, muito usada em escritos médicos da época, e aqui traduzida como "lepra", refere-se a uma série de doenças e cânceres de pele. Os evangelhos sinóticos registram esse acontecimento de forma diferente: Mateus o cita como parte de uma galeria de milagres (Mt 8.1-4). Marcos e Lucas o colocam como um dos primeiros sinais maravilhosos realizados por Jesus no início de sua peregrinação pela Galiléia. O homem doente e transfigurado por uma doença que o excluía socialmente, contrariando a Lei (Lv 13), busca a Jesus com todas as suas forças como única solução para seu grave problema. Ele se aproxima do Senhor com fé, humildade e vontade de obedecer ao que Jesus lhe mandasse fazer; exatamente como todo pecador arrependido deve agir. O perdão assim como a cura se materializam instantaneamente ao toque do Senhor, e o homem renasce, livre do pecado e da enfermidade que o escravizavam.

9
Jesus tentava evitar que o povo interpretasse mal sua pessoa e ministério, pois muitos o aclamavam como grande curandeiro, milagreiro e líder nacionalista revolucionário, que era a visão simplista que alimentavam quanto ao Messias prometido. Além disso, suas atitudes começavam a irritar os líderes religiosos e provocavam neles enorme inveja e medo de perderem o poder sobre o povo. Jesus manda que o homem vá apresentar-se ao sacerdote de plantão; e com isso, o estimula a guardar a Lei, apresentar todas as provas de sua cura e receber a certidão ritual de purificação para que pudesse ser reintegrado à sociedade (Mt 8.4; 16.20; Mc 1.44).

10 Os fariseus (em hebraico original: separados), citados aqui por Lucas pela primeira vez, mas que já haviam questionado o ministério e a pessoa de Jesus anteriormente, eram mestres autoritários e muito respeitados nas sinagogas. Formavam uma confraria e um partido político, com mais de seis mil membros, espalhados por toda a Palestina. Eles se autodenominavam "guardiões da Lei". Pregavam que suas tradições e interpretações teológicas eram tão importantes quanto as Escrituras Sagradas (Mc 7.8-13). Jesus já havia confrontado alguns líderes judaicos em Jerusalém (Jo 5.16-18). Agora o seguiram até uma casa em Cafarnaum, com o objetivo de analisar suas palavras e vigiar seus movimentos. Os "escribas" (v.21) eram estudiosos com grande habilidade para a escrita (arte rara na época, permitida apenas aos homens, e de muito prestígio). Eles eram responsáveis pelo estudo, interpretação e ensino da Lei (escrita e oral) e das tradições judaicas. A maioria dos "escribas" pertencia ao partido (popular) dos fariseus e os demais eram vinculados ao partido aristocrático dos saduceus.

11
O estilo palestinense de construção já havia incorporado a maneira greco-romana de cobrir as casas com uma espécie de laje pré-moldada em ladrilhos de barro cozido (Mc 2.4).

12
A grande causa das doenças no mundo reside no pecado: nos cometidos por cada um de nós em função de nossas vontades perversas (Jo 9.3), e naqueles praticados pela humanidade como um todo desde a Queda (Gn 3). O homem paralítico, pela fé, reconhece o pecado como a raiz do seu problema e, por isso, obedece à ordem de Cristo. Os amigos revelam igualmente grande fé em Jesus e amor ao amigo incapacitado, e não desistem ao primeiro obstáculo, pelo que também são abençoados. Esse episódio nos leva a concluir que a oração e o esforço dos amigos e parentes em levar seus "atrofiados pelo pecado" ao Senhor, serão eficazes e galardoados com alegrias espirituais.

13 Para os fariseus e os escribas (doutores da Lei), a blasfêmia (palavra que ultraja a Deus ou a religião), era o pecado mais grave e terrível que alguém poderia cometer, sendo sujeito à pena de morte (Mc 14.64).

14
Aqui temos mais uma evidência da divindade de Jesus, pois ele conhece plenamente os pensamentos e os mais profundos sentimentos de cada ser humano (Mc 2.8). Os corações das pessoas, quando não entregues ao Senhor, são levados a condenar tudo o que se refere a Deus e à verdade. A cura para Deus é um ato muito mais fácil do que levar o homem a reconhecer seus pecados e decidir por uma vida de adoração espontânea ao Criador. A restauração de um doente pode ser comprovada num instante, mas a restauração da alma pode levar algum tempo, e somente Deus é capaz de atestar esse milagre (Mc 2.9-10).

15 A autoridade de Jesus não era humana, nem fora outorgada por líderes religiosos, mas sim de Deus. O vocábulo grego transliterado: exousia, que significa: "proveniente de Deus" (Mt 28.18), enfatiza este atributo de Jesus. Seu título: "Filho do homem", bem como sua plena divindade, são prerrogativas exclusivas do Messias (o Cristo) prometido (Dn 7.13,14). A operação de milagres e maravilhas é uma prova da presença do Rei e do Reino entre nós (10.9).

16 Levi era o nome de família de Mateus (3.12; Mc 2.14), o apóstolo rico do colegiado de Jesus (Mt 10.3; At 1.13). Como "publicano", chefe dos fiscais da coletoria de impostos para o governo romano, a serviço do tetrarca Herodes (Mt 9.9), era odiado pelo povo judeu, pois os publicanos eram, em geral, desonestos e maldosos. Jesus havia ministrado em Cafarnaum durante algum tempo, quando conheceu Levi e se tornaram amigos. Alguns discípulos de Jesus, que eram pescadores, voltaram a trabalhar em seu ramo em certas ocasiões. Mateus tomou uma decisão só de ida. Sabia que o preço de seguir a Jesus implicaria em mudança total de vida sem direito a volta, ainda que momentânea. Entretanto, Levi o fez com grande alegria de alma. E ao invés de o fazer em surdina, deu uma grande festa "evangelística", convidando todos os seus amigos para verem e conhecerem o Messias que lhe confiara a gloriosa missão de proclamar Seu Reino e libertar a todos das ilusões e das amarras do pecado. Conta-se ainda que, após a ressurreição de Jesus, Mateus foi um valoroso missionário em muitos lugares da Palestina e em terras distantes, onde morreu.

17 Os publicanos se davam bem com os "pecadores". Enquanto os primeiros extorquiam e roubavam seus próprios irmãos judeus; os outros, tratavam com desleixo os diversos preceitos cerimoniais exigidos pelos fariseus e escribas. Contudo, os dois grupos não tinham paz nem desfrutavam de alegria real em seus corações. Enquanto os líderes religiosos e mestres da época procuravam a salvação por meio da segregação, ou seja, "seleção natural dos mais dedicados no cumprimento formal das inúmeras leis judaicas", Jesus chegava com Seu Reino oferecendo a Graça de Deus aos que, de coração sincero, desejassem simplesmente amar a Deus de verdade e viver este ato de adoração no dia-a-dia. Esta proposta de Deus tocou as almas espiritualmente famintas dos publicanos e pecadores, que não tiveram muita dificuldade para enxergar seus muitos erros, e arrependidos, sentiram-se bem-vindos ao banquete de Jesus. Já os fariseus e escribas tinham grande dificuldade para reconhecer qualquer pecado em si mesmos; e, por isso, ficaram fora da festa. Um dos principais temas das parábolas de Jesus sobre a salvação eterna é: os que se julgam justos, separam-se da Graça Salvadora de Cristo (18.9-14; Mc 2.17).

18
João Batista não era o Filho de Deus. Porém, veio com uma missão poderosa e específica: preparar o coração da humanidade para a chegada de Cristo e a implantação do Reino de Deus. João foi criado e educado no deserto, junto a um grupo de judeus teologicamente muito restritos e sérios em relação a Deus. Aprendeu a sobreviver com uma dieta limitada e austera, própria do lugar que habitava, composta de uma espécie de gafanhotos (que até hoje são torrados e degustados pelo povo da região) e mel silvestre. Seu ministério foi marcado por uma mensagem urgente, grave, forte e direta quanto ao arrependimento dos pecados, mediante testemunho público e um ritual de passagem pelas águas, repleto de simbolismos ligados à implementação do Reino, que se completaria com o batismo trazido por Jesus Cristo: o Filho de Deus. Os fariseus também pregavam um modo de vida rigoroso (18.12). Mas Jesus aceitava convites para casamentos, banquetes e festas, pois tinha interesse em estar onde mais se precisava dele: no coração daqueles que se reconhecem perdidos e necessitados da direção e do amor de Deus. Embora Jesus rejeitasse todo o tipo de atitude apenas legalista e exterior, com finalidade de autoglorificação (Is 58.3-11), é fato que ele próprio jejuava e orava muito em particular e defendia o jejum voluntário para benefício espiritual (Mt 4.2; 6.16-18).

19
Neste trecho, Jesus faz a primeira referência à sua morte. A tristeza e a vontade de estar com o Senhor levaria seus discípulos ao jejum e à oração até o seu glorioso retorno e o final dos tempos (Mt 28.20). A Igreja primitiva ensinou e praticou o jejum com orações, especialmente nas épocas de provação e dificuldades (At 9.9; 13.2,3; 14.23).

20 Assim como seria tolice estragar uma veste nova para remendar outra roupa, o novo Caminho oferecido graciosamente por Jesus, não pode ser remendado e estragado com os antigos rituais e obrigações cerimoniais, exclusivamente legalistas e exagerados do judaísmo (como o fato de não mencionar o nome de Deus, apenas para evitar pronunciá-lo em vão). Ainda que o AT esteja intimamente relacionado ao NT, que é o cumprimento das promessas registradas nas Sagradas Escrituras do AT, é preciso cuidado para não se confundir profecias com o seu cumprimento, nem as sombras com a realidade (Gl 5.1-6). Somos livres em Cristo, para adorar a Deus com toda a sinceridade de nossos corações, na beleza da santidade do Senhor (Rm 3.28).


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